“A Tartaruga Vermelha (La Tortue rouge, 2016)” é um filme do gênero animação dirigido pelo holandês Michaël Dudok de Wit, juntamente a alguns grupos de bom prospecto: a distribuidora alemã Wild Bunch, a produtora francesa Why Not Productions, o estúdio belga Belvision Studios e o japonês Studio Ghibli.
Narra a história de um homem de aproximadamente 20 anos, que naufraga sozinho em uma ilha deserta de pessoas, passando, então, a sobreviver com obstinado desejo de construir um barco para de lá sair. Porém, todas as suas tentativas são frustradas por uma tartaruga vermelha que insiste em quebrar as embarcações, impedindo-o de abandonar a ilha. E por quê? Bem… não vou contar tudo, fica na conta da curiosidade; afinal, espero que você assista a esse filme! Vencedor do prêmio especial “Un certain regard” (Um olhar especial) em Cannes e indicado ao Oscar 2017 na categoria Melhor Animação, tem sido bastante elogiado pela crítica especializada, e eu (cá do alto de minha idade…) concordo plenamente.
Mesclando um gráfico visual primoroso com linguagem poética peculiar, a obra de Dudok cumpre as expectativas de um excelente trabalho realizado pelo consagrado Studio Ghibli, o qual produziu filmes importantes e inesquecíveis como “A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi, 2001)” e “Ponyo: uma amizade que veio do mar (Gake no Ue no Ponyo, 2008)”. Seria difícil a ambientação aquática do filme não recordar Ponyo, especialmente pela riqueza de detalhes que parecem ter sidos concebidos do coração dos produtores. Por outro lado, lembra-nos também a envolvente jornada do herói trilhada por Chihiro, transitando entre momentos de contemplação e desafios.
Em “A Tartaruga Vermelha” o espectador é colocado diversas vezes diante de uma tênue fronteira entre o sonho e a realidade da personagem principal, e, a partir disso, seduzido a buscar sentido nos significados dos símbolos expostos ao longo da trama – são muitas metáforas na paisagem, no comportamento dos animais, nos tons de cores etc. Algo que nos chama a atenção inicialmente é o estilo de desenho utilizado para contar essa história: cada cena é uma pintura que ficaria muito bem na parede de uma galeria ou exposição de arte. Os traços adotados são lindos, confluindo o modelo oriental de pintura japonesa (“kaiga”) à ponderada dimensão de profundidade das animações modernas. A imagem ganha um esboço meio granulado que a confere aparência de tela de pintura, é encantador! Também foram bem aproveitadas as dimensões do cenário – uma pequena ilha – para construir interessante simbiose entre flora, fauna e a personagem, que se influenciam mutuamente numa atmosfera agradável, delicada: mais um dos charmes do filme!
O longa metragem explora também as feições da natureza em si e ela como agente no ser humano: a natureza forte e soberana. As mudanças climáticas são determinantes do comportamento da vida na ilha. A chuva, por exemplo, atua como transgressora da linearidade narrativa, causando sensações e transformações nas personagens. A Lua tem crucial importância no desenvolvimento do filme, sendo retratada em suas múltiplas fases e, além disso, ativamente atuante no percurso do protagonista. É ela quem induz o embate entre desejo e vontade nos sonhos do náufrago – entre aquilo que tinha e aquilo que tem – este que cresce conforme experiencia isso (lembrou-me do extraordinário filme “La voce della Luna”). Outro detalhe importante é a mudança da tonalidade da imagem conforme mudam-se as circunstâncias e temperamentos das personagens, característica intensificadora da experiência cinematográfica quanto à imersão do espectador.
O som no filme é bastante marcante, em especial pelo silêncio que predomina sobre boa parte das cenas, num rigor cativante. Laurent Perez Del Mar, compositor da trilha sonora, superou o ótimo trabalho que realizara em “Zarafa (2012)”, orquestrando de forma magnífica a intensidade das cenas, dando vida à profundidade psicológica da personagem principal. As sensações adquirem caráter sinestésico através da música que rompe os inteligentes silêncios, ora adjunta aos quadros e paisagens coloridas, ora ao desbotado universo onírico.
“A Tartaruga Vermelha” está além do clichê Robinson Crusoé, em se tratando de uma história sobre naufrágio. A intérfase entre ser humano e ser animal está contida no elogio à natureza integradora, a qual dispensa rótulos categóricos, hierárquicos. Trata-se, ademais, da conexão entre o homem e ela, da relatividade de que tudo é uno e oscilatório, cíclico. Interpretativamente, chega a receber dimensão espiritual, numa possível leitura da obra.