Entrega-se à cidade a condição de protagonista. Esta é a razão de ser deste “A cidade é um rim” (80 páginas), seleção de contos curtos de Felipe Boaventura, obra vencedora da FLUPP 2013 (Festa Literária Internacional das UPPs), publicada pela TextoTerritório. É a sua estréia como escritor, já chancelada por um importante prêmio literário, o que provoca no leitor atento expectativa e curiosidade.
Não é de hoje que se diz das periferias que elas não têm representação no cenário literário, domado em suas diversas instâncias por grupos da zona sul que projetam seus eleitos e repartem entre si os louros das vitórias. Felipe Boaventura agita nesse corre-corre literário enquanto novidade, esperam que traga consigo uma proposta periférica valiosa, não foi alçado à posição de representante dessas regiões relegadas do Rio? Este cômodo raciocínio não corresponde à realidade de “A cidade é um rim”, Felipe não demonstra interesse por uma lógica criativa que divida a cidade em partes, enxerga o Rio de Janeiro como filtro mesmo e não como tessitura de correntes, monta suas breves narrativas a partir de instantes que seus olhos julgam merecedores do filtro.
E os instantes brilham: em “Balão”, por exemplo, homem e menino vencem os anos de distância e encontram uma forma singela de se comunicar; já em “Vermelho”, Felipe evidencia como o mundo adulto e formal assimila os inevitáveis desentendimentos humanos; em “Suburbana”, apura o olhar para encontrar de forma corajosa o que é uma mulher estranhamente motivada para o amor; “Incursão na Av. Delfim Moreira” é seu conto periférico mais representativo, inverte a estrutura social desta cidade e funciona como espelho de nossa hipocrisia; e o conto final, que empresta o título ao livro, encerra o volume feito ode à melancolia, melancolia que extravasa do narrador e permeia toda a obra.
Tenho que dizer mais de “A cidade é um rim”, algumas aparas precisam ser feitas: uma e outra experiência com a linguagem não contribuem para o resultado final, devem ser encaradas apenas como tais, experiências. Tenho que dizer também que o tamanho curto dos contos não exclui a necessária reflexão sobre sua relevância, alguns contos simplesmente não funcionam, seja porque merecessem maior extensão, seja porque merecessem uma atenção mais cuidadosa.
Encaro os descuidos como infinita vontade de publicar, está feito, a obra está entregue à cidade que lhe serviu de pedra bruta. O Rio de Janeiro certamente requer este retorno, esperamos que Felipe Boaventura continue. Filtrar a cidade é uma feroz vocação.
Nota: Felipe Boaventura lança e autografa “A cidade é um rim” nesta segunda-feira (23/03/15) na Blooks Livraria em Botafogo às 19hs. Compareçam!