O drama “Trainspotting 2” é a continuação de “Transpotting” (1996) – adaptação do romance ficcional de Irvine Welsh, “Porno”. Conta-nos que quatro amigos se reencontram após vinte anos do corrido incidente que os separou: a traição de um deles. Muito mudou desde então, e o que os une não é prioritariamente o sentimento de pertencimento, mas o estigma da latente vingança. Mark Renton (Ewan McGregor), o traidor, retorna com boas intenções conciliatórias, mas encontra em seus amigos sonhos apodrecidos, estes que ele mesmo deixou fragmentados. Assim se inicia a trama.
De origem britânica e dirigido por Danny Boyle (“Trainspotting”, “Steve Jobs” (2015) e “Slumdog Millionaire” (2008 – Oscar de Melhor Diretor)), produzido pela Sony Columbia TriStar Pictures, a boa obra é uma crítica às teorias estéticas humanas, e moderadamente surpreende de forma positiva a quem a aguardava e envelheceu junto com esta ideia fixa.
Observações iniciais: procuro aqui realizar uma análise superficial a ponto de não aprofundar na psicologia própria de cada personagem e não descrever maiores detalhes sobre a condução dos acontecimentos – coisas que, caso as fizesse, seriam spoilers. Você lerá um pequeno esboço semiótico, dada as proporções do filme e seus detalhes propositalmente subjetivos, o que espera aguçar sua curiosidade para essa boa produção. Voilà!
Pode-se dizer que o que vimos em “Trainspotting 2” não foi um harmonia infrene conforme fora o primeiro filme: este aparentou ser como um ditirambo dicendi (canto lírico altamente expressivo) repleto de interjeições de eus latentes e seus rápidos diálogos munidos de informações desorganizadas. Aqui e suavemente, vimos coisas que pretenderam nos submeter ao raciocínio sobre valores e moralidade (com aspecto muito mais narrativo) sobre o estar no mundo e suas implicações, não mais centralizado na dicotomia dor e prazer. Assim, a transitividade dessas coisas está relacionada com o crescer das personagens e os anseios que cultivaram ao longo de vinte anos em que estiveram distantes umas das outras, usufruindo de experiências e oportunidades diferentes. Quando se encontram os antigos amigos é como se uma engrenagem há tempos subtraída de uma máquina à combustão fosse realocada, e a urgente motricidade reinicia a todo vapor!
Cenas diversas capturam o ritmo urbano e o configuram não apenas como mera paisagem determinada pelos sujeitos dela partícipes, mas também deles determinadora. A imagem de um trem em movimento sincretiza o caos e a ordem transigentes entre mente e corpo, insanidade e sanidade, imaturidade e maturidade, desejo e vontade. Feita tal metáfora pois, ao mesmo tempo, da genealogia da palavra “trainspotting”, tem-se o verbo no presente simples: “to spot”, que, neste sentido, significa “ver”; ele compõe a expressão “spotting trains” (vendo trens) ou “trainspotting”. O cultural termo de língua inglesa está intimamente associado à prática corriqueira de observar trens que passam, vislumbrando-os, sendo, portanto, uma atividade tida como neutra ou frívola. No primeiro filme as quatro personagens principais, submetidas à dependência química, agiam como observadores de trens passantes; em “Trainspotting 2” elas procuram ser passageiros com destino à emancipação do mal em si.
Uma coisa importante: o conceito filosófico nietzscheano/estoicista do “Eterno retorno” está aplicado diretamente ao tempo cronológico das personagens, sobre a forma com a qual se apegam aos caminhos já trilhados e com a qual deles se desvencilham. Por vezes elas sucumbem às suas fraquezas justamente nos momentos em que aparentam estarem mais fortes, como se submetidas a uma maldição. Dando-se por meio de inquinados diálogos marcantes das dificuldades do eu se expressar diante do mundo violento, ocorrem flash backs pontuais, a princípio recordativos, mas, adentro, existe um diálogo entre passado e presente. Isso foi um insight valioso por parte da direção, colaborativo para construir uma pulsão de originalidade a partir de um novo roteiro com personagens velhos.
Elas visitam e revisitam, tanto no plano mental quanto espacial-geográfico, lugares explicitados no filme anterior, resolvendo pendências contidas ali ou meditando sobre a transfiguração do espirito do tempo (“zeitgeist”), a fim de reconstruir uma estética memorial que tem a ver com a maturidade desenvolvida. Em função de seu caráter recessivo, a obra, se comparada à antecessora, dirime a lírica elocucional do protagonista, como se adormecesse a juventude expressionista para que se acordasse a estaticidade peremptória da velhice. Isso é frustrante, mas belo! O espectador poderá sentir que assistiu à mais do mesmo, porém o que importa mais: de uma ótica diferente.
Naturalmente, consoante aos filmes de essência crítica nonsense, há insistência irônica o bastante nas falas e pensamentos das personagens – como em “Dr. Strangelove”, por exemplo. Isso configura um humor violento ao andor das relações, alguns diriam um “humor inteligente” (não que todo humor não o seja…), inclusive. As fantasias trajadas para persuadir autoridades em alguns momentos do longa são além de estratégias funcionais, são deboches da organização social conflitantes com o sentimento de não liberdade. Há relacionamentos explicitamente passionais, indagações sobre autenticidade dos laços entre amigos e marcas vigorosamente indenitárias de liquidez informacional, próprias da pós-modernidade. Por outro lado, através de signos da subcultura a qual incorporam os protagonistas, há também um choque entre décadas: anos 90 e anos presentes. Essa característica provocativa está nos detalhes artísticos audiovisuais: no figurino, na maquiagem e na trilha sonora, que vão de Queen a David Bowie.
Também ocorre forte crítica à espetacular sociedade de consumo e à reificação do homem em função das coisas, algo recorrente em bons filmes acúleos, tais como “The clockwork orange”, “The fight club” e “American beauty”. Embora fluído, tudo está em seu lugar no que diz respeito à representação da luta contra a quimiodependência, que está tratada de forma extraordinária e se preocupa, quanto a esse tema, em obstruir a linguagem polimórfica da qual utilizou-se o filme precedente. Nota-se um desenvolver individual nos papéis, uma força de formato construtivista, autoeducativa. As drogas definitivamente são tidas como barreiras entre o trem e o ser, barreiras sublimes a serem superadas em meio à náusea da vida.
Ewen Bremner (Spud) dá um show de atuação e encara uma responsabilidade maior na história, posto que no outro filme teve um papel menor; Robert Carlyle (Begbie) e Jonny Lee Miller (Sick Boy) estão em ótima atuação também, conforme esperado. Já Ewan, que assume grande responsabilidade de ser a égide modelar das mudanças, peca um pouco por sua inexpressividade casual, sendo que o ator não chegou a atingir o desempenho esperado de sua interpretação comparativamente ao primeiro filme. Mas ainda assim é bom! Está mais do que recomendado.