Nas últimas semanas muito se falou sobre julgar um filme pelo que ele é, e não pelo que ele pode ser, portanto vou tentar ignorar o latente incomodo na minha mente – esse filme seria muito melhor em 2D/ algum estilo de animação que não seja hiper-realista – e julgar Mufasa – O Rei Leão pelo que é: um documentário de mentirinha do National Geographic direto do vale da estranheza.
Pessoalmente, é impossível assistir ao filme sem sentir um incômodo enorme pelo estilo “live action” de animais falantes. Muito se pode discutir sobre como muitas vezes a animação é tratada como um tipo de arte “café com leite”/ “Série B” por estar atrelada a produções infantis, e creio que a escolha dos estúdios Disney de desenvolver o remake e a posterior prequel de O Rei Leão no estilo super realista para um musical com animais falantes seja uma tentativa de dar carteirada de credibilidade e orçamento. Dizer que não funcionou ainda sai barato.
De fato, os artistas que trabalharam na animação são extremamente talentosos, os leões e demais animais se movem como animais, movimentos que respeitam com perfeição a biomecânica da natureza, os rugidos e demais vocalizações também são réplicas perfeitas. E esse é o problema, elas são perfeitas até demais.
As bocas parecem se mover de uma maneira anti-natural dentro de uma cabeça de leão super-natural, principalmente durante a cantoria. O apego verossimilhança faz com que o filme perca todo o charme característico de se ter animais falantes, e já que fica cada vez mais difícil tomar caminhos utilizados para diferenciar os personagens e evidenciar traços de personalidade por meio da aparência a solução é apostar nos micros detalhes das pelagens e conformação dos animais. Mesmo assim, visualmente só se vê uma massaroca de modelos 3D iguais, que falam iguais, correm iguais, cantam iguais – é impossível assistir ao filme sem sentir que você está vendo o Animal Planet do vale da estranheza.
Os grilhões do “live action” não são nem um pouco piedosos quando se trata dos números musicais, que creio ser a maior decepção desse filme. O remake de “O Rei Leão” contava com a nostalgia de músicas aclamadas, conhecidas e queridas pelo público, então o baque era um pouco melhor.
Pois por mais que parecesse que o Pumba feito por uma IA revoltada que quer dar início a revolução das máquinas estivesse cantando Hakuna Matata para você, ele ainda estava cantando Hakuna Matata.
Agora, simplesmente não estão mais cantando Hakuna Matata e sim tentando trazer emoção e catarse com músicas que parecem terem sido feitas pelo algoritmo do tiktok.
Nenhuma delas tem letras bonitas ou boas composições, você as escuta, mas elas não dizem absolutamente nada, a falta de sustança fica ainda mais gritante pelos maus intérpretes que são os bonecões 3D hiper-realistas.
Não há carisma nenhum ali para sustentar uma música bobinha e sem sal. O que realmente é chocante para um filme da Disney considerando que os atos musicais quase sempre são memoráveis e feito por pessoas muito talentosas e competentes.
Em Mufasa, nem as tentativas de usar Timão e Pumba como alívio cômico e tentar dar uma quebrada toda vez que alguma das canções originais castiga o público dá certo. A dupla parece as assistentes de palco de programa de auditório quando o convidado comete alguma gafe e elas precisam fazer uma gracinha ali com o público para minimizar o vexame.
A dupla Timão e Pumba quebram a quarta parede em vários momentos do filme e tentam fazer um bate bola com o público, que de cara já sabe qual o destino da narrativa. A piada de que todo mundo sabe o que vai acontecer com a história do Mufasa é super recorrente e se ela serve como recurso narrativo ou de confissão do “por que diabos estamos fazendo esse filme” talvez só o mais ganancioso executivo da Disney possa responder.
A premissa de contar a história do Mufasa tem seus méritos, realmente em vários momentos a Disney faz o que sabe fazer de melhor e toca na grande ferida da nostalgia. Há sim alguns momentos bastante emocionantes, e que podem deixar alguns espectadores que tem um grande carinho por esse universo de olhos marejados. Entretanto, ter a nostalgia e as referências ao filme antigo como alicerce da narrativa me faz questionar como esse filme vai funcionar para os públicos mais novos, que não têm décadas de carinhos e memórias de o Rei Leão embutidas na cabeça.
O maior crime de Mufasa – O Rei Leão é ser exatamente aquilo que ele é: uma tentativa de arrancar até a última gota de dinheiro apelando a mais efêmera das nostalgias. E não há carrasco mais cruel do que a sombra da potencialidade daquilo que poderia ter sido.