O Animal Cordial é um filme de 2017, dirigido por Gabriela Amaral de Almeida e distribuído no Brasil pela California Filmes. Disponível na Netflix, O Animal Cordial é um filme de suspense, cuja tensão é crescente e a escalação dos eventos e a mudança da postura dos personagens, acontece de forma muito rápida.
Facas sendo afiadas e a carne de um coelho sendo preparada é uma das cenas que iniciam o filme. O início de O Animal Cordial é calmo, mas já possui uma trilha sonora pesada e um clima entre os personagens de tensão, pois já é fim do expediente e todo mundo quer ir embora. Um dos atendentes acaba indo embora e a única que fica é Sara (Luciana Paes).
A única coisa que impede os funcionários do Restaurante La Barca fecharem é o último cliente, Amadeu (Ernani Morais), que pede um prato com coelho. Os funcionários estão revoltados, mas, ainda sim, preparam o prato. O dono do La Barca é Inácio (Murilo Benício), que controla tudo e superestima o seu próprio Restaurante e sua gestão.
Mesmo após a cozinha fechar, um casal entra no restaurante, Bruno (Jiddú Pinheiro) e Verônica (Camila Morgado). Então, a tensão começa a aumentar, ainda mais porque os cozinheiros já fecharam a cozinha e Djair (Irandhir Santos), é aquele que relata isso para Inácio, que permanece calmo, e ainda diz que, ainda na semana, uma jornalista, crítica de gastronomia irá aparecer, portanto, ele quer um novo cardápio, ignorando o bom senso de dispensar os funcionários na hora marcada.
Quando dois assaltantes invadem o restaurante exigindo dinheiro e assediando sexualmente Verônica, os eventos se escalam rapidamente. Inácio atira em um dos assaltantes e, ao invés de chamar a polícia, ele decide manter o assaltante baleado no chão, agonizando, enquanto pede para Sara amarrar o outro.
Sara, logo, vira cúmplice de Inácio, porque ele, aos poucos, faz todas as pessoas que estão dentro do restaurante, de reféns. Munida por uma ambição e desejo por Inácio e uma vontade de agradar, Sara faz tudo que Inácio pede. Enquanto isso, ele se mantém calmo, cordial, enquanto vai deixando um rastro de sangue durante a história. Enquanto isso, Djair, Amadeu, Bruno e Magno (Humberto Carrão) – o outro assaltante – estão amarrados na cozinha.
Inácio é um homem ambicioso, vaidoso. Até ensaia o discurso que irá fazer à crítica de gastronomia que irá visitar o La Barca. Ele se acha um artista, se superestima e seu próprio restaurante. Aos poucos, ele se transforma, se mantendo ainda calmo e cordial diante de toda a situação sangrenta que ele mesmo cria.
O que se pode ver em O Animal Cordial, é a animalização dos personagens. O restaurante se torna uma selva. Em que Inácio torna-se um predador, Sara, sua ajudante e os dois, vão deixando de ser gente, viram animais. Existe uma tensão sexual entre os dois, mas porque eles se aproximam em sua própria ambição, em sua loucura e o seu tesão pelo controle, pela morte. Aos poucos, os cadáveres vão se espalhando pelo restaurante, e o sangue também. Os dois, inclusive, fazem sexo, banhados de sangue, quase de forma animalesca.
É quase como se houvesse um expurgo de todos os desejos e frustrações de Sara e de Inácio. Sara, que possui inveja da madame que entra no restaurante, que quer se aproximar de Inácio, que quer ser reconhecida e que sonha, com algo melhor que não consegue ter. E Inácio, que quer esse prestígio de ser um artista da gastronomia, que discute com a esposa o tempo inteiro pelo telefone e que, secretamente, ainda se sente medíocre.
Enquanto os horrores acontecem no La Barca, a trilha sonora é tensa durante todo o filme. Os reféns viram as presas. Tornam-se o coelho a ser preparado no balcão da cozinha, o coelho, tão fácil de ser abatido, como o próprio Inácio diz, ao perguntar para Amadeu, como estava o prato.
Os reféns, amarrados na cozinha, tentam se soltar, mas não vêem saída. Eles são as presas. Djair até tenta dissuadir Sara, mas sem sucesso; Bruno está catatônico e Amadeu, que é ex-policial, se mantém calmo, como se a morte não fosse surpresa para ele.
Mas a selvageria toma conta do La Barca e Sara obedece tudo que Inácio faz porque sonha em planos com ele, mas aos poucos, eles vão deixando de ser gente e tornando-se apenas coisas munidas por seus desejos e frustrações. Os sonhos se esparramam pelo chão como o rastro de sangue que toma conta do restaurante.
O filme conta com um elenco de peso. Murilo Benício atua muito bem na transformação que Inácio passa durante o filme, mostrando um personagem narcisista, egocêntrico e frio.
Inácio se olha no espelho, inclusive, três vezes. A primeira, é se arrumando, ensaiando o discurso que dirá à crítica de gastronomia que visitará o restaurante mais tarde na semana. A segunda, é para observar o corte que Verônica dá em seu rosto, e ele passa a mão no corte, e prova do próprio sangue. Já na terceira, o vidro do espelho está quebrado e ele pode ver sua imagem distorcida, a imagem do que ele se tornou depois de todas as atitudes que toma. Na terceira, a desumanização é completa, ele nem é mais gente.
Quem também dá uma atuação incrível é Luciana Paes, como Sara, ambiciosa e sonhadora, aquela que tenta se aproximar do chefe fazendo tudo que ele pede. Sara já não se sentia gente, mesmo antes da derradeira noite no La Barca e ainda sonha, faz planos para fugir com Inácio, mas, logo, se vê enxotada novamente para a cozinha, na posição que já estava quando a trama começou.
Na cozinha, Sara encontra Djair, interpretado por Irandhir Santos, Djair é aquele que não perde o chão por um minuto, não porque não teme a morte, mas porque sonha, porque a vida dele não é o restaurante, porque sabe viver, porque é humano. Ele sabe quem é e conhece a sua potência. Djair é gay, talentoso e não abaixa a sua cabeça e tudo isso incomoda Inácio que corta seus longos cabelos, tentando desumaniza-lo.
O filme tem um ótimo ritmo, cada cena parece um afiar de facas com uma trilha sonora que indica o tempo inteiro a suspensão constante dos horrores que vão acontecendo ao longo da trama.
Ao fim do filme, o La Barca está todo manchado de sangue, as pessoas que entraram ali deixaram de ser humanas, se tornaram presas, se tornaram predadores. Se tornaram animais. A única que se mantém resiliente é Djair, porque já sabia quem era.
No La Barca, quase todos se tornam cardápio: da própria selvageria ou das frustrações e desejos de Sara e das ambições e insanidade de Inácio. Diante de tamanha animosidade, O Animal Cordial é um filme que fala sobre o lado mais feroz do ser humano, aquele que escapa quando somos guiados apenas por nossos desejos e frustrações. O lado que desfaz qualquer humanidade possuímos e nos reduz a animais, sem cordialidade alguma.