Em 1997, nascia no Reino Unido a maior saga da literatura infanto-juvenil da atualidade, destinada a encantar milhares de fãs – de todas as idades, vale ressaltar – ao redor do mundo. Mais do que uma simples série de fantasia, Harry Potter abordava a importância da amizade, da lealdade, da bondade e, acima de tudo, de como escolhas erradas podem gerar conseqüências catastróficas em nossas vidas. Não demorou muito para que J. K. Rowling fosse considerada um mito da literatura contemporânea, sendo aclamada não apenas pelo público jovem, como pela crítica especializada.
Após dez anos de estrondoso sucesso, Rowling viu-se diante de notória polêmica ao defender a permanência de Johnny Depp no elenco do filme “Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald”, apesar de ter sido acusado de violência doméstica por sua ex-esposa Amber Heard. A franquia “Animais Fantásticos”, que mantém viva a essência de Potter nos cinemas, faturou cerca de 500 milhões de reais em apenas duas semanas de exibição nos cinemas.
Embora Heard tenha retirado as acusações no ano passado – claramente acuada por tamanha repercussão do caso –, após ter chegado a um acordo “amigável” de divórcio com o ator, fãs de Potter manifestaram-se inteiramente contrários à permanência de Depp na sequência da saga. E, para grande surpresa do público, após permanecer em silêncio por certo tempo, Rowling declarou em seu Twitter que se sente “sinceramente feliz” por ter Depp como principal integrante do elenco de “Animais Fantásticos”.
Evidentemente, a comunidade de fãs da autora mostrou-se perplexa com a decisão de Rowling, que claramente sobrepôs o estrelismo aos princípios morais que tanto frisou em seus sete livros dedicados à vida de Harry Potter. Rowling construiu um enredo riquíssimo em tolerância, para mais tarde esquecer-se da importância do respeito ao próximo quando sequer mencionou o nome de Amber Heard em sua declaração a favor de Depp no Twitter. Simplesmente defendeu que “os acordos implementados para proteger a vida privada de duas pessoas devem ser respeitados”, o que deixou os fãs com uma sensação de total falta de coerência.
Sabemos que Depp é um ser humano como outro qualquer, que toma atitudes precipitadas no calor do momento e comete erros. A questão aqui não é se Depp é uma “boa” ou “má” pessoa, mas sim a falta de atitude de Rowling perante o ocorrido, desperdiçando uma excelente oportunidade de ressaltar a importância do empoderamento feminino diante de agressores que se alimentam da insegurança de suas vítimas. É preciso enfatizar que atitudes como as de Depp podem gerar graves conseqüências – em muitos casos, a prisão, por exemplo – e que nós, mulheres, não nos calaremos mais diante de agressões que são inaceitavelmente recorrentes em nosso cotidiano.
Como se não bastasse, a polêmica agravou-se com o fato de o diretor da franquia David Yates ter anunciado que a homossexualidade de Dumbledore não seria retratada explicitamente na sequência do primeiro filme. Obviamente, por “não explicitamente” entende-se que não haverá qualquer menção ou demonstração de que o personagem é de fato gay, ainda que tenha vivido um relacionamento intenso com Grindelwald, personagem interpretado por Depp. Rowling, como criadora do universo literário e roteirista do(s) longa(s), também não se demonstrou contrária à decisão de Yates, o que gerou grande revolta por parte de um público que clama por maior representatividade no cinema.
Era de se esperar que a autora de Harry Potter, com todo o seu poder e influência sobre a mídia, se manifestasse contra qualquer tipo de covardia. No entanto, estamos diante de uma nova Rowling, que nos ensina mais uma valiosa lição: escrever sobre as mazelas do mundo é importante, mas lutar contra elas, na prática, é essencial.