Eu já tinha escrito quase dois parágrafos dessa resenha quando resolvi apagar tudo e começar de novo. Há bastante tempo eu não me deparava com uma escrita de interpretação tão intrigante, mas tão clara ao mesmo tempo. Paradoxo, né? Mas é exatamente esse complexo de emoções que sentimos quando passamos cada página do livro “Ball Jointed Alice: uma história de amor e morte”, da autora Priscilla Matsumoto: o livre arbítrio para a interpretação de cada colocação, mas com os propósitos de Priscilla explícitos na escolha de cada frase da obra.
Antes de começar a falar sobre o livro, é importante enfatizar que “Ball Jointed Alice” se trata de uma arte fora dos padrões de ficção. São as consequências da instável mente humana que são retratadas a todo momento no mundo de Priscilla Matsumoto, que traz uma analogia ao universo de Lewis Carroll, “Alice no País das Maravilhas” e “Alice Através do Espelho”, acopladas aos principais questionamentos sociais e humanos do século XXI, como cultura do estupro, homossexualidade e suicídio.
Spoilers a seguir!
O livro conta a melancólica história de Frank, um homem que nos seus quase 30 anos de idade está totalmente perdido na vida, reflexo de uma infância onde foi abusado sexualmente pelos pais, que desencadearam problemas psicológicos, vícios que transitam de drogas à sexo, que tiveram como consequência sua internação em um hospício, onde conheceu o grande amor de sua vida, Alice.
Frank mal tocava em Alice, muito menos saciava sua vontade de tê-la como sua. Ele nunca havia se sentido daquela forma, capaz de amar alguém com tanta intensidade. Suas relações sempre foram casuais, apenas uma vontade de satisfazer seus vícios sexuais, o que nunca foi uma dificuldade, pois Frank faz o estilo alternativo sedutor. Mas o mundo de Frank vira ainda mais às avessas quando Alice se suicida, cortando sua garganta, e ele se vê diante da morte da única pessoa que comprovava a existência de um coração no corpo dele. Incapaz de superar a morte de Alice, Frank, que é artesão, produz a ball jointed doll Alice, uma réplica de resina em tamanho real da Alice original.
Todos os títulos dos capítulos são cuidadosamente escolhidos para demonstrarem o desenvolvimento da ball jointed doll Alice no mundo real, no âmbito emocional e racional, em conjunto com trechos de músicas, livros, obras em geral, que iniciem a narrativa que será abordada no capítulo. Curioso ou não, as músicas e frases se referem à artistas que se encaixam totalmente com o perfil do narrador, Frank, evidenciando ainda mais a perspicácia e inteligência de Priscilla em nos aproximar cada vez mais do mundo do personagem.
“We can leave this world, leave it all behind
We can steal this car if your folks don’t mind
We can live forever if you’ve got the time, you motherfucker!
(My Chemical Romance, Save yourself, I’ll hold them back)
No decorrer da história, somos introduzidos aos amigos que Frank conheceu e que fugiram com ele do hospício, personagens tão enigmáticos quanto o protagonista. Cada qual com o seu problema, cada qual tentando levar a vida depois de inúmeros traumas que sofreram desde a infância e que ainda os assombram na vida adulta.
Todos nos conduzem a questionamentos sociais que vão contribuindo para o desenrolar da trama. Seja o enrustido Shin, à psicopata Emi, passando pela fashionista gótica desequilibrada Tay e o encantador Gerard, não existe um personagem de “Ball Jointed Alice: uma história de amor e morte” que não nos proporcione uma respirada profunda e reflexões sobre problemas sociais e a instabilidade que eles acarretam à mente humana.
Nessa narrativa de aceitação que a obra de Priscilla se torna mais rica. O primeiro fato que comprova que todos ali são oscilantes é o fato que ninguém se importa de ter uma boneca em tamanho real falante convivendo com eles. Em um primeiro momento, achei que as falas da ball jointed doll Alice eram fruto da mente insana dos personagens, mas no decorrer da história, aquilo se torna tão natural que a interpretação para este fato vai variar de leitor para leitor. E existe coisa mais maravilhosa do que um autor nos permitir criar no nosso imaginário nosso próprio universo de sua obra?
“A mente humana é tudo. O que você pensa, você se torna.”
(Sidarta Gautama)
Coincidentemente, ou não, eu me recordei muito da obra de Lewis Carroll no decorrer da leitura do mundo de Priscilla Matsumoto, não pela evidente inspiração de personagens, mas pela brilhante capacidade de Priscilla em conseguir captar as caraterísticas da narrativa de Carroll e conseguir ressaltar os mesmos sentimentos em uma escrita totalmente personalizada e única. “Alice no País das Maravilhas” e “Alice Através do Espelho” são leituras totalmente interpretativas, que nos introduzem ao tão fantasioso País das Maravilhas, que apesar de ser recheado de criaturas mágicas, estas podem ser facilmente associadas à figuras do mundo real.
Falando em associação, eu me desafiei a identificar na obra de Matsumoto os personagens que se assemelhavam às clássicas figuras do País das Maravilhas. Embora no decorrer da trama nós saibamos quase todos, eu não consegui identificar apenas um personagem, a lagarta azul Absolem, a personalidade mais intrigante e reflexiva do universo de Carroll, e fica a intriga: somos nós, leitores, que iremos estabelecer as respostas às indagações propostas por Matsumoto? Ou foram os questionamentos de Frank para si mesmo?
Acho que nas duas opções cabe a nós desvendar as charadas. Mas essa é a grande jogada de “Ball Jointed Alice: uma história de amor e morte”, cair em uma narrativa sem rótulos, onde nós temos a liberdade de estabelecer nossas próprias conclusões sobre as incertezas propostas por Priscilla Matsumoto. Um universo enigmático que nos tira do mundo real para nos colocar em um mundo fictício que em muito se assemelha com a realidade.
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