Certas pessoas nascem com a vocação para a polêmica. Basta postarem alguma opinião e o escândalo já está pronto para ocupar a mídia especializada durante um bom tempo, rendendo uma guerra de paixões, temperadas com pitadas de cancelamento.
Zack Snyder é um desses indivíduos. Cineasta notório, sugrabtas películas se destacam mais pelas polêmicas que geram, dividindo opiniões entre público e crítica, do que pelas bilheterias que geram.
Se Snyder fosse uma personagem de quadrinhos, certamente seria o Black Bolt (Raio Negro) da Marvel. Ambos tem o poder de gerar destruição em massa quando fazem uso de suas respectivas vozes. Basta pronunciarem uma palavra para o caos vir com a velocidade do som.
A mais recente hecatombe verbal que o polêmico diretor causou foi especular sobre o código de conduta moral do Batman. Em entrevista ao podcast Joe Rogan Experience, Snyder foi categórico ao afirmar que: “Batman não poder matar é cânone, certo? Bom, a primeira coisa que quero fazer quando me dizem isso… é ver o que acontece [quando ele mata], … As pessoas me dizem: Não o coloque nessa situação em que ele precisava matar alguém.”
Na visão de Snyder, matar seus vilões tornaria o Batman um personagem mais icônico e mais relevante no universo das HQs. Tal posição não é nenhuma novidade para Snyder. Basta lembrar que, em seu Homem de Aço (2013), causou controvérsia ao fazer com que o Superman assassinasse o General Dru-Zod, quebrando o seu pescoço (francamente, não sei como tal cena foi aprovada pelos executivos da Warner).
A resposta não tardou e veio na visão de um dos mais icônicos e revolucionários argumentistas do universo das HQs, Grant Morrison. Com sua visão abalizada sobre a psiquê e a persona de Bruce Wayne / Batman, Morrison esclareceu, em seu boletim informativo Xanadu, sobre o equívoco e desconhecimento de Snyder sobre o Vigilante de Gotham City:
“Eu estava lendo como o diretor de cinema Zack Snyder acha que Batman deveria matar como parte da missão autoimposta do personagem para impedir o crime. Acontece que se Batman matasse seus inimigos, ele seria o Coringa, e o Comissário Gordon teria que prendê-lo! O fato de Batman se colocar em perigo todas as noites, mas se recusar firmemente a assassinar, é um elemento essencial da magnífica e horrenda psicose infantil do personagem.
De certa forma, Bruce Wayne nunca realmente saiu daquele estado ‘infantil’, preso para sempre como o garotinho que perdeu os pais no Beco do Crime. Isso é fundamental para a grandeza (do Batman) como herói de aventura ficcional! Isso não é óbvio? A linha que Bruce Wayne traça é uma delimitação clara entre ele e seus vilões, e se Batman algum dia a cruzasse, não haveria diferença entre eles.”
Grant Morrison.
Agora, qual dos dois tem razão: o cineasta polêmico ou o quadrinista consagrado?
Diretamente de Oa para o resto do universo, podemos afirmar, sem nenhum medo de errar que, mais uma vez, a visão de Snyder é distorcida e distópica sobre o universo da DC Comics.
Antes de prosseguir, quero deixar registrado que sou fã, incondicional dos filmes de Snyder. Acho que 300 e Watchmen são clássicos de adaptação de HQs para o cinema, mas nenhuma dessas duas películas, à época que foram filmadas e lançadas, tinham qualquer ligação com o universo das HQs (O universo de Watchmen somente foi incorporado anos depois no multiverso da DC).
Inicialmente, vamos analisar a persona de Kal-El, o último filho de Krypton. Em que pese toda a sua herança kryptoniana, preservada pelo Erradicador, e sua ascendência divina, sendo a Casa de El descendente direta do Deus Cósmico Rao, Kal-El foi criado por simples fazendeiros do Kansas e aprendeu o valor da vida, desde os primeiros anos, após sua nave ter aterrissado nos arredores de Smallville.
Nas HQs, o humilde filho de fazendeiros sempre falou mais alto que o alienígena. Na personalidade do Superman, Clark Kent nunca se deixou envaidecer pelos poderes divinos que o Sol amarelo concediam aos herdeiros de Rao. Ao contrário, sempre se conteve e absteve-se de usar todo o seu potencial em combate.
Na premiadíssima série, Reino do Amanhã, escrita por Mark Waid e ilustrada por Alex Ross, apresenta-se um futuro distópico, no qual a comunidade heroica perde seus freios morais e passa a seguir Magog, após ter assassinado o Coringa, sob o clamor popular. Ultrapassada a barreira que separa heróis de vilões na comunidade meta-humana, não havia mais nada que os diferenciasse.
A inconsequência e o excesso de violência levou o mundo a um armagedon de proporções bíblicas e épicas. A beira do caos atômico, diante da destruição do Kansas, Magog cai genuflectido diante do Superman e faz a seguinte reflexão:
Quando a escalada de violência chegou a limites inimagináveis, temos um dos mais memoráveis diálogos entre Superman e Batman sobre o valor da vida humana:
Em que pese tanto o Homem de Aço quanto o Morcego de Gotham já terem ceifado vidas em algumas HQs no passado, tais histórias foram a exceção da regra de que os heróis, acima de tudo, lutam para preservar as vidas daqueles que não podem se defender.
Ao expor sua visão sobre o Batman, Snyder ignora a clássica divisão das personagens das HQs das eras de ouro, prata, bronze e ferro: heróis, anti-heróis e vilões.
Heróis são personagens altruístas, moralmente qualificados, que colocam o bem e a vida humana como prioridades máximas em suas ações. Anti-heróis são personagens moralmente ambíguos, dotados, muitas vezes, de motivações egoístas, que não se importam com a consequência de seus atos. Vilões…, bom vilões são vilões.
Ao querer fazer com que o Cavaleiro das Trevas passe a executar os seus vilões, Snyder pretende rebaixar o Batman a categoria de anti-herói. Em todas as adaptações para o cinema, houve sempre a ideia de apresentar o Batman como um herói que, acima de tudo, preserva a vida daqueles que não podem se defender diante do mal.
Até na mega série de Frank Miller, o Cavaleiro das Trevas, o Batman se recusa a executar o Coringa, quando o tem em suas mãos.
Grant Morrison pontuou muito bem quando lembrou que a persona do Batman foi formada a partir de um evento traumático: o assassinato de seus pais. Neste momento, Bruce Wayne teve sua infância encerrada e sua inocência morreu junto com seus pais. Seu juramento foi salvar vidas e evitar que outros sofressem a dor da perda.
Houve mortes durante a sua luta contra o crime? Sim, mas foram exceções, muitas vezes decorrentes de efeitos colaterais ou em legítima defesa.