“[…] Superman nos obriga a olhar para nós mesmos como indivíduos, e a humanidade como um todo, através do filtro de um ser que se parece muito com nós, mas tem a força física e as habilidades de um deus. No entanto, apesar de suas forças corporais, ele não é onisciente e, portanto, deve se aventurar no mundo em sua própria jornada de autodescoberta. Não é mais capaz de ver o futuro do que qualquer um de nós e, de muitas maneiras, muito menos consciente de seu passado do que a maioria. Ele é, em essência, um deus perdido. Uma divindade forçada a caminhar sozinha pela Terra, buscando sua própria verdade pessoal, inadvertidamente questionando as mesmas verdades que o resto da humanidade se apega com tanta força.
[…] Fiquei encantado com a incrível oportunidade de colocar essa figura divina indefesa firmemente em nosso mundo imperfeito. Foi uma chance de contar a história complicada de um salvador em luta, um messias relutante, de uma maneira moderna. Uma oportunidade para desconstruir cuidadosamente o caráter divino clássico, que muitas vezes percebemos como aspiracional, mas também distante e divino às vezes.“- Zack Snyder.
Com tom mais sério, carga dramática significativamente mais pesada e desenvolvimento trágico, “Batman vs. Superman” de Zack Snyder é com certeza um dos filmes de super-heróis mais ambiciosos e originais da nossa era. Possui profundidade temática e simbólica.
No final de Man of Steel (2013), Superman foi envolvido em uma batalha cataclísmica que deixou um rastro enorme de destruição. Em Batman v Superman, descobrimos que Bruce testemunhou esta tragédia e está preocupado com a ameaça à humanidade representada por este visitante estranho de outro planeta com poder inimaginável e julgamento questionável. Superman, ao mesmo tempo, está preocupado com a crescente brutalidade do vigilante que luta contra o crime em Gotham City. Acrescente a isso as maquinações de Lex Luthor – e o que é uma decisão bastante criativa – e você terá Batman v Superman.
“There was a time above… a time before… there were perfect things… diamond absolutes. But things fall… things on earth. And what falls… is fallen. In the dream, it took me to the light. A beautiful lie.”
Todo o filme gira em torno dessas linhas. O monólogo de Bruce é paralelo ao final do filme e se liga ao tema geral, que contrasta seres do céu vs. seres da terra e do submundo: deuses vs. homens, um tema apropriado para um filme de “Batman vs. Superman”. Ao usar tais palavras, Bruce é estabelecido como o herói trágico arquetípico como Hamlet, Orfeu, Édipo, etc. Ele também é identificado com um tema fundamental da mitologia ocidental: a natureza caída da humanidade. Isto é derivado, em um contexto político e histórico, da queda do Império Romano, mas em um nível religioso e espiritual da expulsão de Adão e Eva do Jardim. O monólogo estabelece imediatamente o tom e a ambição do filme.
É preciso ter em mente que tudo o que o Batman é como personagem, é o resultado da morte de seus pais. Isso é Batman, em seu âmago. Suas saídas noturnas são uma tentativa interminável de redimir o pecado original da morte de seus pais. Cada detalhe daquela noite estava gravado nas suas lembranças mais profundas.
Em uma das primeiras cenas, a família de Bruce passa por um teatro onde está exibindo ao filme de 1981: Excalibur. A Obra Prima é uma releitura do mito arturiano, e é também um dos filmes favoritos de Snyder, e influenciou fortemente o BvS. O tema central de Excalibur é o seguinte: “O Rei e a Terra são um só“. Esse tema permeia todo filme e parece ser também proeminente na Liga da Justiça.
Na mesma cena podemos notar o número do prédio ao lado: 1108. Isto corresponde a um verso do Livro do Apocalipse:
“E os seus cadáveres jazerão nas ruas da grande cidade, que espiritualmente se chama Sodoma e Egito, onde também nosso Senhor foi crucificado”.
Isso poderia ser facilmente encarado como uma coincidência, mas sabendo da atenção que Snyder confere aos detalhes, o interesse no cristianismo, a relação direta entre o verso e a cena, e o fato de que ele já fez isso antes, parece intencional.
Neste universo, Bruce testemunhou seu pai combater violência com violência, o que o influenciou imensamente em toda sua vida. Thomas Wayne, pai de Bruce, antes de morrer, chama sua esposa pelo nome, “Martha”. Além da óbvia configuração para o enredo ao estabelecer a psicologia freudiana de Bruce, essa é uma referência ao maravilhoso filme “Citizen Kane”, de Orson Welles, que chama por “Rosebud” antes de falecer.
Em um ato de desespero, Bruce corre para a floresta antes de cair na caverna. A floresta em tom simbólico representa o desconhecido. Já a caverna é um símbolo universal de origem, nascimento e de iniciação através do renascimento. É também uma representação do útero maternal e do mundo das ilusões de Platão.
A identidade do Batman nasce resultante da morte simbólica de Bruce, morte nesse sentido é transformação, renascimento. Bruce não é mais um homem, apenas. Ele é homem feito por Deus. Ou, para ser mais preciso, Bruce é o herói trágico arquetípico e Batman um deus. O que separa, em termos pagãos, um homem de um deus? Poder. Um tema central no filme é a questão do “poder”, mas é mais profundo do que simplesmente “o poder corrompe”. De fato, no filme, a ideia de que o poder corrompe é retratada como resultado de um trauma psicológico. A perda relativa de poder, em face de um poder maior, também corrompe. Essa rivalidade mimética está presente em Bruce e Lex.
Batman v Superman e a filosofia de Nietzsche.
Nietzsche acreditava que o homem criou Deus à sua própria imagem. O filme representou essa ideia de várias formas, uma delas de forma literal, fazendo com que o homem, Lex, criasse o diabo, “Doomsday”, de seu sangue. Mas BvS também a interpretou no sentido figurado e de maneira mais direta por meio do Superman.
Deus está morto.
Nietzsche não quis dizer de forma literal quando afirmou que Deus está morto e nós o matamos, mas em BvS essa afirmação foi ilustrada tanto no sentido literal quanto no sentido figurado. Superman morreu pela mão de Lex Luthor. E quando isso aconteceu, o mundo reconheceu que o Super-Homem não era um deus, não era um ser onipotente. Eles finalmente o aceitaram como um homem que estava tentando fazer a coisa certa. A ideia dele como um deus foi morto. Não através de avanço científico, mas através de maior compreensão e compaixão pelas outras pessoas.
Apesar do quanto o BvS ilustra a filosofia de Nietzsche direta e literalmente, também o desafia, porque a morte de Deus não é também a morte da moralidade da humanidade. A existência do Super-homem desafia tudo o que os humanos pensavam que conheciam e acreditavam. Mas sua morte transforma, para melhor, muitas maneiras de pensar. Clark inspirou Bruce e Diana a se tornarem heróis novamente. Eles olham para ele como um exemplo, como alguém para ajudá-los a se tornarem melhores, para se tornarem o melhor que podem ser. Superman é o übermensch literal – ele é o homem de cima, o alienígena. Existindo, ele desafia todos os sistemas de crenças do planeta.
Uma morte significativa.
“Deus está morto, mas dado o caminho dos homens, ainda pode haver cavernas por milhares de anos em que sua sombra será mostrada.”
A morte de Clark tem um impacto profundo e duradouro. Como público, sabemos que ele voltará, mas as pessoas no universo não costumam retornar. Nietzsche via a sombra de Deus como um negativo e a religião como uma força finalmente destrutiva. A sombra de Clark não é nada além de positiva. O mundo mudou quando o Super-Homem voou no céu. Ele inspirou as pessoas a serem melhores. Sua morte vai unir a Liga da Justiça.
Antes da morte do Superman, a humanidade procurou honrá-lo através de monumentos maciços. Depois, Diana disse que eles não sabiam como honrá-lo. Isso é verdade, mas também é verdade que o governo e a população em geral reconheceram que não precisavam erguer uma estátua, porque o maior monumento às conquistas do Super-homem era que as pessoas da Terra ainda estavam vivas. Bruce escolheu homenageá-lo formando a Liga da Justiça e protegendo a Terra, assim como ele. Acho que este é o mais próximo de um verdadeiro paralelo de Jesus que BvS tem, e é mais uma crítica ao cristianismo do que qualquer coisa.
Ao longo da história as pessoas que se chamam cristãos lutaram para provar o quanto são devotas através da construção de igrejas enormes, ou lutando em guerras, ou criticando a fé de outras pessoas ou outras religiões, quando nada disso fazia parte dos ensinamentos de Jesus. Seguir a Jesus seria seguir seu exemplo. O mesmo pode ser dito para Clark. Nietzsche desprezava o cristianismo, mas ele nutria um respeito saudável por Jesus. Como ele mesmo disse, “havia apenas um cristão e ele morreu na cruz”. No final do BvS, o povo da Terra parou de sentir a necessidade de construir estátuas. Parou de sentir a necessidade de olhar para Clark com medo ou admiração.
O BvS não é preguiçoso com sua filosofia. Ele mergulha nas opiniões de filósofos cujo trabalho é comumente conhecido. É legitimamente significativo porque examina e desafia filosofias, em vez de apenas repeti-las. Os temas são apresentados de uma forma que força o público a pensar sobre eles e seu simbolismo, e não apenas jogando tudo de “mão beijada”.
É possível, ainda, discordar de tudo isso e interpretá-lo de várias outras maneiras, e é por isso que ainda estamos falando sobre isso, depois de considerável tempo de lançamento.