O aclamado Festival de Cannes começou essa semana e recentemente tive a oportunidade de conversar com a brilhante atriz e diretora, Vitória Vasconcellos que está participando do festival de filmes pela segunda vez, agora para promover o seu novo curta-metragem, Bleed Don’t Die.
A história de Bleed Don’t Die me parece muito profunda, ela tem algum tipo de relação com a sua realidade ou é apenas uma narrativa que você criou baseada em coisas que já leu e assistiu?
A história tem relação total com a minha vida, meus filmes sempre nascem da minha realidade, de alguma forma, mesmo que o filme seja totalmente fictício, eu não tenho nenhum filme, autobiográfico realmente, Pathei Mathos, meu primeiro curta profissional, ele é tipo semi-biográfico, só porque tem um evento que coincide diretamente com uma coisa que aconteceu comigo, em geral tem uma separação muito grande entre os meus filmes e a minha realidade, mas ao mesmo tempo uma aproximação muito clara.
Bleed Don’t Die nasceu 100% do meu relacionamento com as mulheres da minha vida, eu cresci numa família muito matriarcal, a figura da minha mãe e da minha irmã são figuras muito fortes. Eu sempre tive amigas, que foram muito influentes na minha vida, então eu tenho esse sistema de apoio que é feito de mulheres, literalmente, cada uma segurando a mão da outra.
Eu acho que se tivesse uma força humana que pode causar um Apocalipse é o apoio entre mulheres, então eu queria fazer um filme que meio que falasse dessa força, que pode causar um apocalipse de um jeito metafórico mas também de um jeito prático.
Esse filme tem uma pegada fantástica, em um futuro meio distópico, a gente brinca com muitas alegorias e metáforas. Ele também é inspirado num poema medieval chamado Perceval: The Story Of The Grail, ele só tem personagens homens, e fala sobre morte e vida de um de um jeito, um pouco inesperado, o nosso filme é assim, ele não é uma adaptação nem nada, tem uma distância muito grande entre material e o fim, mas é uma versão feminina dessa ideia, de explorar a morte e vida, só que com mulheres e resiliência feminina como o protagonista. Então é totalmente inspirado nas mulheres da minha vida e em algo que eu li.
Como você se sente participando pela segunda vez do festival de Cannes e quais são suas expectativas?
Eu estou super feliz porque quando eu fui pela primeira vez, eu não sabia o que esperar. Eu lembro que eu fui com a mesma pessoa que eu estou indo esse ano, um amigo da faculdade, que é um dos produtores de Bleed Don’t Die, quando a gente foi, fizemos basicamente toda a preparação que não precisava, sabe? A gente não fazia a menor ideia do que esperar, então a gente fez um monte de documento, que nunca nem usou. Quando chegamos lá vimos que é um mundo realmente.
Apesar do curta, ter sido gravado nos Estados Unidos, com uma coprodução do Canadá, o projeto foi pensado para ser um longa, gravado no nordeste do Brasil, ele só foi gravado nos Estados Unidos pois estava morando e estudando lá então, por uma questão de conveniência mesmo, a gente acabou gravando lá, mas a ideia do longa acontece no Brasil, ela é bem diferente do curta, os temas permanecem, as protagonistas permanecem, mas a ideia é bem diferente, então é muito importante a gente poder estar levando esse projeto para o mercado e conversar com os produtores, realizadores e investidores, que tem interesse em ajudar a gente a contar a história nesse formato. Então, além de ser uma oportunidade muito boa de ficar relaxando na Riviera Francesa, assistindo filmes incríveis e de encontrar com realizadores que eu admiro, é também uma oportunidade de meio que colocar gasolina nesses projetos, que precisam de parcerias para acontecer.
Então é, pela segunda vez é ainda mais legal, especialmente porque a primeira vez que eu estive lá foi durante a pandemia, então tinha muita burocracia, teste todos os dias e pelo que me falaram naquele ano estava muito vazio, para mim estava cheio né? Mas me falaram que normalmente é mais que o dobro de gente.
Então, por um lado estou assustada, mas por outro lado eu meio que entendo melhor como é que funciona, sei algumas coisas que não fiz, e que eu quero fazer lá… fora que esse ano o Brasil tem um pavilhão no festival, em 2021 não tinha, porque a gente tinha um presidente que não valorizava arte e a vida humana, vários países estavam representados, mas o Brasil não estava. Esse ano a gente tem uma comitiva Brasileira tem um catálogo brasileiro, tem um pedacinho brasileiro em cada seção do festival, esse ano com certeza vai ser melhor.
Qual foi o momento mais difícil da sua carreira até agora?
Eu acho que o meu momento mais difícil foi durante o primeiro curta que eu mencionei que eu fiz de forma profissional, apesar de ter sido um curta estudantil, ele rodou no circuito profissional, o Pathei Mathos, porque ele foi inspirado em um acidente que aconteceu comigo.
Eu estava gravando outro curta em 2018, tinha 20 anos, e eu fui atropelada por um carro, quebrei minha perna em vários lugares, isso foi nos Estados Unidos, meus pais tiveram que me buscar lá, eu tive fazer uma cirurgia, aí tive sair da universidade por 6 meses para me recuperar e aprender, andar de novo e fazer outra cirurgia.
Acho que essa foi a pior parte porque eu estava de cama e depois de cadeira de rodas, e foi uma época que eu não sabia se eu ia voltar ter a vida que tinha antes, porque eu já morava fora sozinha há uns 4 anos, nesse ponto, da minha vida eu já era super independente, então foi um período que eu achei que talvez tudo pudesse mudar, e de uma certa forma, tudo mudou, porque, durante essa época, a experiência que eu tive com esse desafio me inspirou diretamente a criar Pathei Mathos, que é um filme sensorial sobre a experiência do trauma.
Esse foi o filme que me permitiu ter uma carreira, porque a gente fez quando estava no terceiro ano da universidade e ele passou em vários festivais, inclusive no de Cannes em 2021, ele me permitiu viajar o mundo, e eu acabei fazendo um laboratório em Toronto, e por conta disso eu estou agora no meu terceiro e maior curta.
Hoje eu estou bem no começo da minha carreira ainda e por mais que eu não seja grata por ter sido atingida por um carro, sabe? Acredito que o aprendizado que fica tanto para mim, quanto para as pessoas que viveram isso ao meu redor, é que a gente viveu esse episódio juntos, e é isso aqui que o filme acaba sendo uma transformação dessas coisas muito ruins, que vão estar com a gente, que não temos poder de mudar, mas temos o poder de ressignificar. Então eu acho que essa foi a parte mais complicada, assim de momentos de carreira e de vida em geral que eu passei.
Você é atriz e diretora, que papel você prefere exercer e qual você acha mais difícil?
Essa pergunta é difícil, eu comecei a minha carreira como diretora, tudo para melhorar e fortalecer a minha carreira como atriz. Eu já atuava na universidade, só que eu percebi que se eu não tivesse meus próprios filmes, eu meio que ficava à mercê dos papéis disponíveis, e dentro disponíveis os que eu passava nos testes, sabe? Então passou pela minha cabeça que, se eu fosse ficar fazendo apenas teste de elenco, eu ia demorar muito para participar de um projeto que eu realmente estivesse investida, então eu comecei a escrever roteiros e a dirigir filmes com essa desculpa de poder me dar mais oportunidades como uma atriz.
Quando eu comecei a fazer isso, eu percebi que eu adorava e que esse realmente é um jeito de você explicar o mundo para você mesma, e uma forma de expor como você vê o mundo para outras pessoas.
Eu não sei se eu tenho uma resposta, sobre qual é mais difícil porque os dois são muito difíceis e fazer eles juntos é pior ainda, eu acho que cada vez eu aprendo um pouco mais. Eu não sou mestre nisso não, mas toda vez que eu faço um novo projeto, eu percebo que eu tenho um pouco mais de confiança e método.
Você tem que aprender a olhar para você mesmo, friamente e não de uma forma narcisista, tipo, você quer mesmo refazer esse take porque você não gosta desse jeito ou porque sua cara tá estranha e seu ego vai ficar machucado? Então tem muito tem muito disso de saber separar as coisa, e eu ainda estou aprendendo a meio que tirar essas preocupações que às vezes não são técnicas da minha cabeça sabe?
Eu sou muito protecionista, então ainda parece que eu fico colocando complicações no meu caminho para a perfeição e a perfeição é uma ilusão, né? Acabou que as duas coisas meio que ficaram grudadas, mas o que eu mais faço ainda é a atuação, porque eu estou em outros projetos e nos meus.
Qual conselho você daria para nova geração de brasileiros que também sonham em trabalhar na área do cinema?
Eu acho que a coisa mais útil que eu já escutei especialmente para as pessoas que são que nem eu, é se prepare muito para fazer as coisas, toda vez que você tem uma oportunidade que você acha que você não está pronto ainda, é só você se preparar, que vai estar pronto, essa serve tanto para atuação e direção.
Se você quer ser realizador do cinema nacional, o melhor jeito é só fazer, então mesmo se não tiver dinheiro, se não tiver digital, ou câmera boa, nada disso importa.
A melhor Câmera é a Câmera que você tem, a melhor equipe, é a equipe que vai aceitar trabalhar com você. Então você tem que botar a cara no mundo e fazer! Mete a cara no mundo, vai fazer e não se preocupa em fazer um filme perfeito, só faz e vai aprendendo, vai vendo o que funciona, o que não funciona e isso é uma coisa que eu faço, cada filme é um aprendizado.
Qualquer erro é um avanço, então para de olhar os filmes como sucesso ou derrota e olha todos como um erro pra frente, eu faço isso, pode parecer pessimista essa visão, mas eu acho que é muito otimista, e a ideia é botar a mão na massa. Essa é a magia do audiovisual, são surpresas que jogam a tua vida de cabeça para baixo e fazem tudo mudar, então acho que tem que estar aberto para o mundo e ter ambição.