Toc… Toc… quem bate à porta? Arthur Fleck ou devemos chamar de Coringa?
Na esteira do sucesso arrasador do primeiro filme que custou míseros (para os padrões hollywoodianos) 55 milhões de dólares e faturou mais de 1 bilhão, Coringa: Delírio a Dois deu ao diretor Todd Phillips (Se Beber não Case) uma liberdade criativa ao gênero das adaptações de quadrinhos nunca vista na história dessa indústria e que possivelmente, jamais se repetirá.
Diferente do que se especulava, não é um musical, bem, não exatamente da maneira que um filme musical deveria funcionar, nem mesmo é um filme baseado em história em quadrinhos, tampouco é uma história protagonizada pelo cartunesco arqui-inimigo do Batman que espalha o caos através de seu gás do riso e humor literalmente ácido e homônimo do personagem título dessa duologia.
Assim como os devaneios de seu Arthur Fleck (Joaquin Phoenix novamente incrível), em Coringa: Delírio a Dois ele agora é um homem encarcerado na prisão estadual do Arkham após as atrocidades cometidas no primeiro filme, é impossível limitar a gêneros essa continuação.
Phillips teve a liberdade de ousar tal qual fosse o limite da mente perturbada de seu personagem principal, nada possui limites sendo carregada pela insanidade de seu protagonista, passando pela abertura em animação onde a dualidade vivida pelo personagem dá as caras pela primeira vez, as cenas musicais (em tamanho excesso que em certo momento o próprio Fleck se cansa delas) ou em um idílico e quase circense julgamento, onde em certo ponto o Coringa tem como adversário o promotor Harvey Dente, futuro (ao menos no quadrinhos) vilão, vejam só, Duas Caras.
Essa dualidade permeia todo o roteiro, o “delírio a dois” do título que a princípio parece remeter a relação conturbada entre Arthur Fleck e Lee Quinzel (Lady Gaga, que claramente se esforça para dar o seu melhor nesse papel) na verdade possui inúmeras camadas.
A relação entre os personagens de Phoenix e Gaga é inegavelmente a força motriz do filme, mas vai além disso, Fleck nunca quis ser “O Coringa” essa lenda urbana, e quase mítica criada após os acontecimentos do primeiro filme e que proporciona a Arthur, uma legião de fãs e seguidores, entre eles a própria Lee, uma interna voluntária apenas para se aproximar de seu amado, mesmo que para isso preciso prestar favores (subtendidos) aos guardas da prisão.
De volta ao “delírio a dois” do título (número mágico dessa continuação, ou segundo filme se preferir) é parte essencial da história, seja a dinâmica entre Lee e Fleck com seus devaneios sempre representados nas dinâmicas musicais, que servem de fugas imaginárias a prisão onde se passa a maior parte do filme, seja na dualidade entre a personas do próprio Arthur Fleck e Coringa, o que cria o debate central do filme e do julgamento: seriam eles a mesma pessoa?
As situações do primeiro longa criaram o Coringa como uma nova personalidade ao sofrido Arthur Fleck, ou o Palhaço do Crime sempre esteve ali e ações externas foram o seu despertar?
Esse é o verdadeiro “delírio a dois” que norteia o roteiro (mais uma vez assinado pelo próprio Phillips com parceria com Scott Silver assim como o primeiro) apresentado desde a cena de abertura, uma animação onde mostra o fragilizado Fleck em conflito com a sombra cruel do Palhaço, o embate entre Coringa e Fleck leva a disputas na prisão, no julgamento, na cidade e o vencedor desse duelo interno e silencioso levaria ao clímax do longa, afinal quem venceria, é possível existir um vencedor?
A dualidade essa também presente nas diferenças entre os dois filmes, o original, mais urbano e colorido mostra o ápice da existência do Coringa, o segundo mais sombrio, triste, frio, com a maior parte do tempo passado na prisão e onde as apresentações musicais delirantes de Lee e Fleck eram a única fuga daquela realidade sem cor, sem emoção, sem vontade, se o primeiro filme era do Coringa, esse é de Arthur Fleck.
E aí que se encontra a maior diferença dessa adaptação livre criada por Todd Phillips em comparação ao famoso palhaço criminoso das HQs, nos quadrinhos o Coringa suprime seu alter ego, poucos sabem seu verdadeiro nome e isso nem importa na verdade, pois aquela é sua verdadeira face, no universo ficcional de Phillips, a figura de Arthur Fleck é igual e até maior que a do palhaço, essa cisão entre as contrapartes dessa personalizada é a razão desse segundo filme
Coringa: Delírio a Dois é quase uma resposta em tela de Todd Phillips a certas críticas ao seu primeiro filme, a violência apresentada no original, dessa vez vem totalmente de forma psicológica, interna, íntima, mas ainda mais brutal, Arthur Fleck é tão vítima do Coringa quanto qualquer outro que cruzou o caminho do Palhaço do crime, mas afinal o que seria o Coringa, nesse universo próprio, não é nada mais que uma perigosa ideia.
Arthur Fleck só a apresentou a ideia ao mundo, e seus seguidores podem levar a anarquia e o caos em diante, mais próximo do que é o Coringa nas demais versões apresentadas, mas sem precisar mais do alquebrado e cansado Fleck, ele era só o combustível do fogo que está por vir. Coringa: Delírio a dois encerra essa história trágica, mas quem será que riu por último?