“Poor things” ou “Pobres Criaturas”, conforme creditado no Brasil, é o mais novo longa do renomado Yorgos Lanthimos, diretor de obras como “O sacrifício do servo sagrado” (2017), “A favorita” (2018) e “A lagosta” (2015), e está sendo reconhecido como um dos favoritos desta temporada de premiações.
O filme, que estreou recentemente nos Estados Unidos, está sendo muito aclamado pela crítica e pelo público geral internacionalmente, aumentando ainda mais as expectativas do público brasileiro em relação à obra.
A narrativa segue a proposta de acompanhar a evolução de Bella Baxter quando ela é trazida de volta à vida graças ao obcecado cientista Godwin Baxter, que utiliza de seu corpo e de seu cérebro para realizar um experimento: Como seria colocar o cérebro infantil de um bebê em um corpo maduro de uma adulta? O resultado é uma mulher em sua extravagante aventura por descobertas, liberdade e conhecimentos.
A partir de tal premissa, que vai se revelando de maneira chocante e hilária, “Pobres Criaturas” aborda pautas sociais muito discutidas atualmente, como, por exemplo, o movimento feminista do corpo livre, utilizando da ficção científica para tal.
Quando Bella descobre os prazeres que seu corpo é capaz de sentir, ela ouve comentários do tipo: “Você não deveria fazer isso, é mal visto na sociedade” – a princípio, a mulher ingênua não consegue compreender tais julgamentos, levando a uma reflexão:
Por que algo tão bom é tão mal visto? Assim, o telespectador é forçado a observar a sociedade por um ponto de vista totalmente neutro, pela ótica da inocente protagonista, que é livre de qualquer tipo de filtros sociais, e perceber, juntamente a Bella, que os julgamentos que ela recebe são ridículos e sem sentido.
A narrativa traz o contexto social real contemporâneo e o insere em meio a um universo diferente de tudo já visto antes no cinema – além das criaturas mágicas e projetos científicos absurdos que também são responsáveis pela criação de tal universo autêntico, outro fator determinante para essa singularidade está na mistura de elementos do passado, que são reconhecíveis para o telespectador, com elementos futuristas, que geram uma estranheza fantástica em quem assiste.
Observa-se esses componentes do passado nas construções arquitetônicas, que parecem antigas, nas vestimentas que são mais “clássicas” e formais, bem diferente do que se usa hoje em dia, na ausência de aparelhos eletrônicos como celulares, e até mesmo em detalhes como a comunicação via cartas manuscritas. Por outro lado, o filme também conta com elementos futuristas como a ciência avançada e os bondes gigantes que sobrevoam as cidades.
Dessa forma, existe uma proximidade social entre o telespectador e a obra, enquanto o universo do filme é único e magicamente indeterminável, causando uma quebra de conforto e gerando uma estranheza.
Toda a magia do filme só funciona bem por conta dos incríveis trabalhos dos profissionais de edição e efeitos visuais, que dão vida às criaturas bizarras presentes no filme, além dos esforços da equipe de montagem, que funciona de maneira a permitir um bom entendimento da narrativa, sem que o mistério das descobertas seja perdido.
O roteiro busca analisar e criticar principalmente questões feministas, como a visão da sociedade em relação ao prazer da mulher, o trabalho sexual feminino, e a feição que os homens parecem sentir pela ideia de dominar as mulheres e prendê-las com seus poderes arbitrários e autoritários.
Todas essas críticas são feitas de formas criativas e interessantes. Além disso, o filme também abre espaço para outras reflexões. Por exemplo, o personagem God (Willem Dafoe), demonstra claros indícios de um trauma geracional, repetindo as mesmas atitudes tóxicas de seu pai maníaco.
Crítica em Video:
A trama também nos leva a uma reflexão sobre como as pessoas são capazes de coisas terríveis, como desumanizar o corpo e a mente de terceiros, para atingirem seus próprios objetivos – tanto Bella quanto God foram vítimas de experimentos horríveis sem sequer terem a chance de consentirem.
O roteiro usa da ironia para gerar um humor obscuro. Bella Baxter, por não possuir o cérebro desenvolvido, é ingênua e fala o que pensa despreocupadamente, o que gera muitas cenas engraçadas. É um filme que faz refletir criticamente enquanto diverte, além de fazer perceber situações ridículas e irônicas da sociedade.
A fotografia é espetacular e cumpre perfeitamente o seu objetivo de inserir o telespectador no universo da obra, de maneira imersiva. Os visuais e cenários destacados são excêntricos, diferentes de tudo que anda sendo lançado nos cinemas ultimamente, ao destacar a cor e a luz. Entretanto, a fotografia não se contenta com um só estilo, e hipnotiza quem assiste com suas alternâncias constantes.
Algo bem interessante sobre Poor Things é o seu uso das cores, que vai se adaptando conforme as necessidades do roteiro, a fim de ressaltá-lo e de tornar cada parte do filme única. No começo do filme, enquanto Bella Baxter ainda está sob comando de God e ainda não fez nenhum tipo de descoberta acerca de si mesma e do mundo ou teve acesso a curiosidade e interesse por tais descobertas, a fotografia é em preto e branco, demonstrando o quanto o seu mundo era sem graça ou sentido, sem cores.
Quando Bella sai da casa de God e finalmente vê o mundo pela primeira vez, em choque, todas as cores são extremamente fortes – a fotografia, agora, utiliza da ferramenta de contraste de cores para realçar cada uma delas em sua singularidade; as cores são intensas, alguns tons são saturados, e tudo é muito vivido.
Conforme o enredo vai se desenrolando e Bella conhece também as desgraças do mundo, as cores do filme deixam de ser tão destacadas e se tornam mais ordinárias. O som delineia as emoções propostas por cada cena, ressaltando muito bem sentimentos como curiosidade, angústia, tensão e excitação.
O elenco do filme conta com nomes reconhecidos na indústria cinematográfica como Emma Stone (Lalaland), Willem Dafoe (A última tentação de Cristo) e Mark Ruffalo (De repente 30). Além deles, todo o elenco secundário, que conta com nomes como Suzy Bemba e Ramy Youssef, também está adequado em seus respectivos papéis, apesar de não se destacarem tanto quanto os três atores principais.
A atuação de Emma Stone está sendo comentada como a melhor de toda a sua carreira, e não é a toa: A atriz está extremamente convincente ao dar vida à uma personagem de tantas faces, ela vivencia este papel de enorme complexidade com a flexibilidade necessária para tal, demonstrando todos os lados de seu talento, do carisma à sobriedade.
Willem Dafoe também entrega uma performance versátil e exemplar – uma pena que o ator tenha sido esnobado na categoria de “melhor ator coadjuvante” no Oscar, pois ele realmente merecia uma indicação.
Já o papel de Mark Ruffalo é consideravelmente simples, em comparação aos papéis de Emma e Willem, mas mesmo assim a entrega do ator é nítida. Ele está muito mais expressivo e cativante do que em seus projetos anteriores.
A caracterização de todos os personagens é ótima e se adapta de acordo com as necessidades de cada cena, a fim de auxiliar a produzir um realce individual para cada cena. As roupas de Bella (Emma Stone), principalmente durante a segunda parte do filme, são majestosas, coloridíssimas e autênticas, auxiliando a formar a atmosfera única de “Pobres Criaturas”.
Quanto à maquiagem, o destaque vai para o personagem God, de Willem Dafoe, que sofreu diversos experimentos faciais e acabou ficando com o rosto “costurado”.
“Poor Things” é o segundo filme com mais indicações ao Oscar 2024, sendo elas: “Melhor atriz” (Emma Stone), “Melhor ator coadjuvante” (Mark Ruffalo), “Melhor diretor” (Yorgos Lanthimos), “Melhor figurino” (Holly Waddington), “Melhor edição”, “Melhor roteiro adaptado”, “Melhor trilha sonora”, “Melhor cabelo e maquiagem”, “Melhor design de produção”, “Melhor fotografia” e o grande prêmio da noite de “Melhor Filme”.