Existem filmes que despretensiosamente fazem críticas sutis às questões sociais do momento, existem filmes que tocam na ferida, cutucam e jogam álcool para não deixar de arder e não sair da sua mente. “Acompanhante Perfeita” joga querosene de aviação num corte aberto e finaliza com os pequenos tapas da mais bela luva de pelica.
Esse é o tipo de filme que quanto menos você souber na hora de assistir, melhor vai ser sua experiência. Por mais que as viradas no roteiro sejam simples, e a partir do momento em que elas ocorrem, o ritmo aumenta de maneira alucinante. A narrativa consegue abordar de uma forma ácida um tema que cada vez mais vem se entranhando no cérebro das pessoas, agindo de maneira disruptiva no contrato social.
A disrupção que a desumanização do ser humano causa na sociedade já é sintomática na convivência cotidiana: as imagens falsas com filtros distorcidos, a desconexão que uma tela causa nas nossas ações e suas consequências, como a inteligência artificial gera incompetência estratégica, e principalmente como essa tecnologia pode ser deturpada para virar uma arma.
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Mas e se esses sintomas chegassem ao extremo? E se o clímax dessa complicada relação do ser humano com a humanidade fabricada fosse algo bem mais nefasto e sangrento?
“Acompanhante Perfeita” não é só um slasher, mas sim um grito paradoxalmente sútil e estrondoso de alerta: quando nós rebaixamos as intricadas e complexas relações humanas a uma mercadoria as consequências são desastrosas.
Além da temática central do problema latente de que certas alas da sociedade – na sua frustração causada pela própria mediocridade – quando falham miseravelmente em relacionamentos com mulheres, para suprir a sua necessidade emocional e fisiológica recorrem a alternativas, a obra também retrata as nuances da mercantilização do afeto: de personagens que vivem na linha tênue entre “brinquedo” e cidadãos de segunda classe.
É fascinante como o filme faz uma previsão bastante acertada de como seria justificado a utilização de um objeto descartável exclusivamente para relações românticas e sexuais: “objeto descartável de apoio emocional”. A desculpa sem substância de que pessoas não são capazes – ou simplesmente não querem se esforçar – para desenvolver qualquer ação ou relação que requer esforço maior do que o mínimo já é usada hoje em dia.
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Se as pessoas que atuam no trabalho sexual atualmente já são vistas como subhumanas ou “mais fáceis e menos caras que as civis” imagine quando a humanidade é retirada completamente da equação, e o egoísmo vira cláusula pétrea dessas interações. É assombroso como a estatística da empresa que fornece os objetos descartáveis acompanhantes (que curiosamente é nomeada a partir da palavra “empatia”) revela que a maioria das acompanhantes femininas sofrem algum tipo de violência. Inclusive de como é comum que elas sejam usadas para satisfazer fantasias criminosas e como isso é visto pela maioria como nada além de uma mera excentricidade do consumidor.
O desespero pelo agrado de quem vive à revelia da aprovação de seu parceiro romântico é ilustrado de forma aterradora pela incrível Íris (Sophie Tatcher). A obsessão pelo seu namorado – e por consequência dono – Josh (Jack Quaid) chega a causar um incômodo físico no espectador. A forma como Íris literalmente liga e desliga as emoções de completo terror e descontentamento ao saber da mínima insatisfação de seu amado e vai para “configurando minha nova Alexa” faz crescer a sensação de que estamos nos aproximando de uma realidade cada vez mais distópica.
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A existência desesperada de Iris faz um contraste potente com a auto importância de Josh, que frustrado com seus relacionamentos com “todas as mulheres que não prestam” arruma uma forma de se vitimizar até quando se trata de uma mulher não-humana, feita exclusivamente para ele.
Apesar do longa não retratar de forma tão profunda os dilemas morais e éticos de objetos descartáveis criados para performar humanidade como “Blade Runner” “Alien” e “Detroit became human”, as perguntas que ficam quando o filme acaba são desconfortáveis, mas extremamente necessárias. E nos faz refletir sobre como o contrato social teria que ser completamente destruído, e o absurdo virar lugar comum para que vivêssemos numa sociedade em que pôde-se ordenar um parceiro sexual artificial feito para ser o mais real possível por correio.
“Acompanhante perfeita” é um slasher de ritmo alucinante, uma boa crítica social banhada em sangue e tripas. Tudo isso finalizado com um lindo lacinho de cetim retrô do bom gosto estético e momentos divertidos.