O Trono de Ferro não existe mais. Ele foi derretido pelo mesmo poder que o forjou: o fogo do dragão. Agora ninguém mais se sentará sobre as espadas que originaram Westeros. É com esse gostinho amargo que Game of Thrones se encerra. Algo previsível, mas ainda assim necessário. Contudo, não foi a destruição do ícone desejado por todos os lordes dos Sete Reinos que desapontou os fãs, mas a má condução da história até este ponto.
O próprio George R. R. Martin, criador da história, chegou a nos alertar que o final seria agridoce, que agradaria pouca gente. Os espectadores já estavam avisados que não seriam agraciados com um encerramento que atendessem as suas expectativas; entretanto foram treinados ao longo da série a receber algo surpreendente, digno do nome Martin e do que Game of Thrones representa.
Com as péssimas decisões, o que mais foi prejudicado foi o tônus da história.
Tônus é o sabor que permeia toda a série, como se fosse um tempero. Podemos provar dele nas temporadas iniciais quando vemos com clareza que as ricas famílias de Westeros estão guerreando para se manter no poder; vemo-lo também quando somos surpreendidos pelas ações dos personagens que quebram com as nossas expectativas, as famosas reviravoltas.
No caso desta última temporada, o tônus foi totalmente esquecido.
Alguns fatores levam a crer que os fatos exibidos seriam realmente os acontecimentos finais programados para história, contudo, por mais que eles não satisfaçam os “desejos” do público, não houve uma construção decente e razoável para justificar suas alocações. Isso ficou muito evidente no episódio anterior quando Daenerys enlouqueceu “do nada”.
É verdade que a temporada estava desviando o caráter dela para algo diferente de quem ela era, mas faltou alguns acontecimentos para emancipar essa transição. E não. A morte de Rhaegal e da Missandei não forma uma justificativa contundente para Dany atear fogo sobre mulheres e crianças inocentes. Algo que poderia ter sido feito para dar sustentabilidade a essa decisão “lunática” de Daenerys seria mostrar o próprio povo se rebelando contra ela.
Dany poderia ter feito a mesma coisa que ela fez em Meereen. Falaria com o povo que se eles destronassem Cersei, ela não atacaria a cidade. No caso do povo não atender ao seu pedido, ela se sentiria traída e aí sim derramaria fogo e sangue.
Este foi apenas um exemplo, mas alguma coisa parecida poderia ter sido escolhida e mostrada se os executivos e roteiristas da HBO tivessem optado por alongar mais a série. Game of Thrones merecia (até mesmo pelos rendimentos que proveu durante todo esse tempo) um cuidado especial nesta última temporada.
Apesar das escolhas ruins e da falta de sustentabilidade, alguns fatos podem acontecer nos livros.
A ASCENSÃO DO ALEIJADO
Era meio que evidente pela trajetória de Game of Thrones que o final seria algo que desafiasse a “futuro padrão”. A nomeação de um rei aleijado é algo digno de Martin. Quem acompanha a história sabe que ele é mestre em fazer essas coisas. Visto deste ângulo, a escolha de Bran então não se torna algo ruim, muito menos imprevisível.
Quando a série iniciou, a grande questão era quem se sentaria no Trono de Ferro no fim das contas, ou se ele realmente continuaria a existir. Pensávamos, por aprendermos a ler o estilo narrativo de Martin, que uma democracia poderia ser estabelecida para encerrar a série – afinal era essa discussão que Daenerys representava quando decidiu seguir seu destino “libertar o mundo dos tiranos” – mas esquecemos de olhar para nossa própria história.
Considerando que Game of Thrones é a construção de uma realidade paralela que se baseia na idade média, devemos analisar essa escolha com esse olhar. Na época medieval, a democracia era impraticável, mas haviam métodos que a simulavam, por exemplo, a existência de um conselho formado por pessoas de diferentes famílias poderosas, muitas vezes rivais. Isso fazia com que os interesses de “todos” fossem atendidos.
Antes dos reinos se estabelecerem na idade média, só haviam famílias tentando proteger suas terras, povo e legado. Eles lutavam entre si com essa finalidade e com a ideia de ampliar o território para expandir sua proteção. Daí surgiu a necessidade de conquistar. Os conquistadores não tinham legitimidade alguma sobre a terra que “roubavam”, mas por terem matado seus antigos donos, se apossavam dela.
Quando essa luta se tornou mais sofisticada, as famílias que se uniam para destronar reis que não serviam aos súditos formavam um comitê para decidir quem iria assumir aquele lugar. Daí veio a necessidade das reivindicações e de se considerar o histórico do “candidato a rei”.
Vemos isso acontecer quando Daenerys é morta. As principais Casas de Westeros, as mais poderosas, se reunem para decidir quem teria a melhor reivindicação ao trono. Pelo ponto de vista da série, Jon Snow seria o herdeiro legítimo dos Sete Reinos, mas ele, ao mesmo tempo, era um alto traidor, um “regicida” (kingslayer, ou melhor, queenslayer). Desse modo, ele não poderia assumir legalmente o trono. Sua reivindicação legítima morreu ali.
Mas quem poderia assumir? As reivindicações por conquistas eram legitimadas por aqueles que tinham maiores espólios de guerra, aqueles que tinham conquistado mais terras ou feito mais escravos. Ao que parecia, Sansa Stark era o nome apropriado por ter derrotado o Exército dos Mortos, mas ela era uma mulher. Os lordes são pessoas tradicionais. Westeros não aceitaria ser governado por uma mulher se não fosse pela força (como era o caso de Daenerys e Cersei). Sansa não é o tipo de pessoa que assumiria o trono assim. Somente se fosse nomeada. Porém havia alguém ao seu lado que detinha uma reivindicação mais “justa” aos olhos dos lordes: Bran Stark.
Para os lordes, não foi Arya ou Sansa quem derrotou o Rei da Noite, mas os Nortenhos governado pela família Stark. Bran, até onde eles sabiam, era o verdadeiro lorde Stark, herdeiro legítimo do Norte.
POR QUE ESSA EXPLICAÇÃO É IMPORTANTE?
Quando Tyrion foi levado ao encontro destes lordes, ele observou que haviam pessoas conservadoras no local. Ele então, como é um personagem astuto e inteligente, precisou jogar com a política entranhada neles para tornar o nome de Bran Stark aceitável. Na história, ele ainda apelou para o fato dele ser a memória coletiva universal não só de Westeros, mas do mundo. Foi uma jogada fenomenal.
Até mesmo se Tyrion não estivesse “nem aí” para quem iria governar os Sete Reinos – o que seria justificável, uma vez que ele estava à mercê da execução – ele poderia usar Bran como uma maneira de salvar a própria pele. Pois ao nomear um rei ele geraria uma cadeia de eventos que esse rei precisaria retribuir o favor, logo, libertando-o. Mas naquela situação sua liberdade teria que ser incontestável. Que melhor maneira então que torná-lo a Mão do Rei?
Tyrion não estava pensando em si mesmo, mas se estivesse também faria sentido a escolha de Bran.
Então por quê, mesmo depois de toda essa explicação, a nomeação de Bran, o Quebrado não teve impacto algum nos espectadores?
Porque não houve uma condução de eventos que “nos empurrassem” nessa direção. Os roteiristas optam por fazer isso quando pretendem nos surpreender, mas não houve surpresa alguma ali, só um fato morno.
TYRION LANNISTER, O PROTAGONISTA DO FIM DE GAME OF THRONES
Seria injusto negar que o personagem, muito criticado ao longo desta temporada por não fazer jus às suas excepcionais faculdades mentais, não foi o cérebro por traz dos acontecimentos deste último episódio. Ao mesmo tempo que se redimiu por ter levado Daenerys ao poder, ele vingou a morte de seu amigo Lorde Varys, que comprovou estar com a razão.
Tyrion, ao confrontar Daenerys, é preso e sentenciado à morte. Jon Snow o visita, não apenas por ser amigo dele, mas porque demonstra o mesmo desapontamento que ele sentiu ao ver inocentes morrendo em King’s Landing. Ele foi lá porque ele queria ser conduzido a fazer alguma coisa. E Tyrion, como é sábio, percebeu e se aproveitou disso. Ele conseguiu convencer Jon a matar a pessoa que ele amava, mesmo depois dele ter dado a palavra que seguiria ela para sempre.
“Você sempre será minha rainha”
Daenerys era a última rainha com poder efetivo para governar Westeros, inspirando medo nas pessoas. Se ela morresse, poderia se pensar em alguém mais adequado e assim revolucionar a nomeação de reis para sempre. Com esse movimento, Tyrion conseguiu, mesmo preso, mudar o curso da história. Prova que, mesmo amarrado por cordas físicas, nada é mais poderoso que o conhecimento. Fazendo isso, ele reafirma o que Lorde Bealish disse à Cersei no início da série:
“Conhecimento é poder”
Tanto é, que Tyrion conseguiu não apenas usar as motivações de Jon Snow para matar Daenerys como manipular os lordes para apoiar a nomeação de Bran Stark, o que, sozinhos, eles não fariam com certeza. Eles, sendo vaidosos e orgulhosos, apoiariam a nomeação de um aleijado para rei? Pois é, Tyrion conseguiu isso.
Como se não bastasse tudo isso, ele conseguiu fazer o que sempre teve habilidade para fazer: governar. Apesar de Bran ter sido nomeado o Rei dos Seis Reinos, ele acabou sendo apenas uma peça alegórica que satisfaz as necessidades políticas da época, mas podemos ver que é Tyrion quem vai governar Westeros. Bran confia em seu discernimento (até porque, com seus poderes, já o viu governando), portanto não precisará fazer nada.
Então Tyrion, meus amigos, não só protagonizou o fim de Game of Thrones como se tornou o verdadeiro Rei de Westeros.
VERME CINZENTO SE SENTINDO UM LORDE
Outro alvo de críticas neste último episódio foi a postura do Mestre de Guerra de Daenerys ante os lordes de Westeros. Existem algumas observações que refutam facilmente essas condenações.
Verme Cinzento era praticamente o único membro vivo do Conselho de Daenerys.
Lorde Varys, Mestre dos Sussuros – morto por traição.
Missandei, conselheira – morta pelo inimigo.
Lorde Tyrion, Mão da Rainha – a traiu.
Jon Snow, Lorde aliado – a traiu, encerrando sua vida.
Sansa Stark, Lady aliada – tinha desavenças.
Apenas Yara Greyjoy sobrava como representante de Daenerys, mas ainda assim não significava muito, pois passou a maior parte da história longe.
Desse modo, sua Rainha já não tinha mais nenhum conselheiro vivo, fazendo de Verme Cinzento seu porta-voz imediato. Isso confere, legalmente, autonomia e poder para que ele se dirigisse aos lordes como ele se dirigiu. Se não bastasse essa disposição dos fatos, ele ainda comanda um exército de Imaculados, o que lhe dá real poder.
REPRESENTATIVIDADE FEMININA
É pretensioso negar que não houve representatividade feminina no fim de Game of Thrones. Sansa Stark tornou um reino independente, consagrando-se como Rainha do Norte, algo que jamais aconteceria na idade média convencional (pelo menos não por força de decreto; talvez por poderio armamentista). Se isso não é um claro desafio ao patriarcado, o que é?
Essas críticas também parecem desconsiderar Arya e Brienne. Arya recusou ser uma Lady e não aceita viver como todos vivem. Às mulheres da época, isso era uma realidade impossível. Brienne de Tarth vira a primeira e única Lorde Comandante da Guarda Real de Westeros! Um cargo desta magnitude jamais seria dado a uma mulher. A ela ainda é conferido o poder de escrever a história de seus companheiros. Naquela época o poder de registrar os acontecimentos era dado somente aos homens – nobres, religiosos e escribas. Brienne ainda havia sido nomeada uma “cavaleira”. Se a permanência de Brienne na série – porque nos livros ela morre bem antes – não serviu para simbolizar a força que a mulher possui, para que deixá-la viva até o fim?
Houve representatividade sim!
OUTRAS CONSIDERAÇÕES
A morte de Daenerys completa as previsões dos Imortais feitas para ela sobre as traições – “uma vez por sangue, uma vez por ouro e uma vez por amor” – Jon Snow, que é o amante de Dany, trai o legado dela ao encerrar sua vida. Foi um ponto positivo do encerramento da série.
A HBO, porém, desperdiçou a oportunidade que apareceu logo em seguida. Drogon poderia ter recebido a alma de Daenerys, como se ela renascesse no dragão. Isso poderia acontecer talvez pelo animal ingerindo a mãe ou a queimando – sabemos que ela não se queima, mas está morta, não é mesmo? Talvez a reação fosse outra. Não era algo necessário, mas daria uma reviravolta na história, obrigando os remanescentes da guerra a matar o dragão-Daenerys.
Ainda em relação ao dragão, desde que o Corvo de Três Olhos determinou que Bran “jamais voltaria a andar novamente, mas voaria”, os espectadores poderiam esperar que ele, como é um warg (espécie de xamã), controlaria um dos dragões. Isso nunca acontece durante a série, mas fica subentendido na frase final de Bran, O Quebrado.
“Deixe Drogon comigo. Cuidem do resto”
Já que era o último episódio da série, qual a razão de “prometer” isso? Foi uma atitude imprudente.
Todavia, mesmo com estes esclarecimentos e pontos positivos, a série deixou muito a desejar ao se encerrar da forma que foi. O que era para ser épico, acabou sendo apenas um desfecho qualquer.
É claro que agradar fãs não é a razão do trabalho de um contador de histórias, mas faz parte do processo causar nos espectadores sensações que eles não estão acostumados a sentir na sua vida real.
Game of Thrones estava sendo conduzido para este final, mas isso gerou em todos nós previsões bem definidas e o que vimos na tela foi a concretização delas. Não queremos ter a razão no fim de uma história. Por mais que os fatos apresentados façam sentido (mesmo sem sustentabilidade dramática), os executivos e roteiristas da HBO perderam a oportunidade de nos surpreender e fazer esta história ganhar o título de Melhor Série de Todos os Tempos.
No fim, o corporativismo sabotou o drama e o convencional desmistificou o épico.