Maria Callas foi uma cantora de ópera fenomenal, de potência estrondosa, um verdadeiro fenômeno da natureza. Em “Maria” a cantora é interpretada por Angelina Jolie, que ao invés de mergulhar de cabeça no rico repertório artístico e de vida de Las Callas, optou por mais uma vez deixar a vaidade falar mais alto na tentativa de fazer uma performance para “fisgar” indicações e premiações e até mesmo um Oscar.
Artistas torturados e as minúcias de suas vidas, seus escândalos, luxos e excentricidades sempre foram alvo de curiosidade do público. Parece que quanto mais alto o patamar de fama e adoração, maior é a visão dos “meros mortais” de que essas pessoas sequer são humanas, e sim divindades. Divindades essas que não precisam seguir as mesmas regras e convenções sociais da “plebe”.
Digo que foi uma interpretação vaidosa por parte da atriz principal, pois filmes biográficos são carta marcada na hora de pleitear uma indicação nas premiações, principalmente nos últimos anos, e Angelina tem uma certa tradição em buscar papéis que exigem profundidade para de fato passar a bagagem de vida da personagem – nesse caso, que foi uma pessoa real – entretanto, a profundidade bate nas pedras da fascínio que a atriz tem consigo mesma, em muitos momentos suspendendo o mergulho dentro da imensidão de Maria e subindo a superfície Angelina Jolie.
Quando se trata de produções biográficas, por motivos óbvios, faz com que o público já tenha um viés de comparação entre a realidade e o que está sendo passado em tela. E é impossível não fazer a comparação assim que o filme começa com a própria caracterização de Angelina. Não pareceu Maria Callas ali, e sim a Angelina Jolie fazendo cosplay da artista. A maquiagem fez pouco esforço para de fato retomar o rosto de Maria
preferindo enfatizar os belos traços do rosto de Angelina. A diferença fica latente quando se vê a montagem final do filme, com imagens reais de Maria que não parece ter absolutamente nada a ver com Angelina fisicamente.
Não se espera que o ator ou atriz que interpreta um papel biográfico seja um clone perfeito da pessoa e questão, mas o mínimo de verossimilhança é esperado, ainda mais em tempos em que temos técnicas tão avançadas de cabelo, maquiagem, figurino e caracterização no geral. Um ponto específico que se destacou bastante foi o nariz: Maria tinha um nariz lindo, que por muitos poderia ser considerado “nareba, narigão”,mas que harmonizava perfeitamente com sua beleza etérea.
É inegável que o nariz de botão perfeito de Angelina é belo, mas não houve tentativa de adaptar a maquiagem para o rosto de Maria. Tinha que ser Angelina ali, apesar de tudo.
O filme retrata os últimos dias de vida de Maria, dias esses marcados por uma saúde mental turbulenta e conturbada. O nível alto de complexidade dos problemas de saúde mental da artista são difíceis de presenciar, e trazem um incômodo ao assistir. Nós, já sabendo o destino final, ficamos com uma grande sensação de impotência diante da saúde de Maria, que se deteriora cada vez mais rápido. Essa agonia da espera do inevitável é muito bem representada pelos dois coadjuvantes, o mordomo (Pierfrancesco Favino) e da governanta (Alba Rohrwacher). Em vários momentos do filme senti que eles eram meu espelho ao ver as frustradas tentativas de manejar melhor a condição delirante de Maria.
Contudo, o caráter de “cosplay” e não de “interpretação”por parte de Angelina também fica bem evidente na forma incólume na qual Maria é retratada. Apesar do momento extremamente vulnerável da cantora, misturando inúmeras medicações, tendo delírios e alucinações constantes – inclusive na presença de pessoas fora do seu círculo íntimo – a Maria do filme está sempre perfeita, bem arrumada, sóbria, com a aparência do completo domínio de suas decisões e movimentos. Entendo que retratar esse nível grave de adoecimento pode ser uma tarefa ingrata e precisa ser abordada com delicadeza, mas também vejo esses momentos como uma boa oportunidade para mostrar o que de fato acontece durante o adoecimento psíquico.
A vaidade de Angelina me transparece nesses momentos, não há uma interpretação visceral, bagunçada ou caótica. É tudo sempre “olhem como a Angelina fica linda sofrendo” “mesmo cadavérica e no bico do corvo, eu, Angelina Jolie ainda tenho a graça e delicadeza de uma fada”.
Se a premissa do filme foi pegar um curto espaço de tempo, como o diretor Pablo Larraín fez em Spencer (2021), e mostrar uma visão intimista e “por trás dos holofotes” de Maria, ainda sim parecemos ter um recorte de uma equipe de publicistas. Maria não parece ser humanizada, e sim cada vez mais folclórica. Um belo cisne, até em sua canção final.
Quanto a trama, a ideia de uma das alucinações recorrentes de Maria ser um repórter com o desejo de entrevistá-la foi um bom recurso narrativo para mostrar os flashbacks dos acontecimentos mais cabeludos de sua vida. Porém, os acontecimentos selecionados pelo roteiro são muito mais as “fofocas” do que a vida e carreira da Maria. Que muitas vezes parece ser reduzida ao seu relacionamento com o magnata Onassis, e partes interessantíssimas de sua vida pessoal, como seu suplício durante a Segunda Guerra que culminaria em sua chegada aos palcos, são negligenciados.
A escolha dos realizadores de adoração a Las Callas folclórica em um filme sobre Maria tornam a experiência do filme um tanto insossa. Ainda mais com a constante dinâmica de vai e volta dos flashbacks. Talvez se o esforço maior fosse na dualidade de Maria e a fragilidade de uma mulher forte em seus últimos dias o filme parecesse mais “humano” e menos “tabloide”, onde pudéssemos ter a prima-dona das histórias, por inteiro.