Começando pelo óbvio… Mogli – Entre Dois Mundos vai sofrer sim comparação com a outra grande produção que se inspirou no conto – Mogli: O Menino Lobo, lançado em 2016 pela Disney. Entretanto, enquanto que o longa dirigido por Jon Favreau almejava a nostalgia de reproduzir em “live-action” a clássica animação dos anos 30, aqui temos uma visão mais sombria e perspicaz da obra de Rudyard Kipling. No entanto, o resultado final se mostra desequilibrado, por mais empatia que seus personagens carreguem.
A ideia original era que a história chegasse aos cinemas em outubro pela Warner mas, restando poucos meses do lançamento, o estúdio fechou um acordo com a Netflix, que passaria a distribuir o filme mundialmente pela sua plataforma. Pensando pelo ponto de vista comercial, a escolha foi compreensível: há diversas cenas com um certo nível de violência e apavorantes que, se não colocam medo em um jovem adulto, com certeza deixaria muitas crianças ‘traumatizadas’. Optando pelo streaming, o estúdio deixa na mão do público a opção de ver ou não e ainda sim tem um possível prejuízo nas bilheterias administrado.
E o problema de Mogli começa justamente no que foi citado acima. O filme de Andy Serkis (aqui em seu terceiro projeto como diretor) não se decide em levar às telas ou uma versão mais visceral da trama ou uma história que cative a fantasia do público, como fez Favreau anteriormente. Há momentos de ternura e pureza que são abruptamente interrompidos por lampejos de suspense e ação tensa, com o inverso também acontecendo. Não há um equilíbrio na narrativa, deixando no ar um clima episódico em cada ato e prejudicando a percepção e envolvimento do espectador.
O longa é narrado em seu início e no fim pela serpente Kaa (Cate Blanchett) e mostra Mogli ainda bebê sendo salvo das garras do tigre Shere Khan (Benedict Cumberbatch, repetindo aqui os trejeitos vocais do dragão Smaug, de O Hobbit) por uma alcateia de lobos e tendo a proteção e tutela do urso Baloo (Serkis) e da pantera Bagheera (Christian Bale).
Passa-se alguns anos e o garoto, agora interpretado pelo jovem e carismático Rohan Chand, vive totalmente adaptado às leis da selva. Entretanto, questões existenciais fazem o menino ter uma espécie de crise de identidade, não enxergando seu lugar no mundo animal e nem no recém-descoberto mundo humano, com quem tem seus primeiros contatos. Sofrendo a rejeição de alguns de seus pares felinos, o menino se prepara para participar da chamada “Prova” da alcateia, onde a força e astúcia dos jovens lobos são colocados em cheque e, se aprovados, farão parte do bando de caça do grupo.
Mas o retorno do selvagem Khan, que anseia por eliminar o jovem e assim terminar o que começou anos atrás com a morte de seus pais, traz um clima de “gato e rato” entre os dois em diversas situações por volta do segundo ato do filme e culminando em um embate definitivo no final.
Ironicamente, o filme sofre do mesmo mal que seu protagonista, não se encaixando em nenhum dos mundos em que anseia atingir. A violência e suspense já citados afastam o público infantil, enquanto que os adultos enxergarão os mesmos elementos de uma forma mais pasteurizada, desacreditando assim das cenas em questão.
Não há canções, não há coreografias como nas produções da Disney, o que teoricamente aproxima a adaptação da obra original. Mas o roteiro de Callie Kloves falha em dar coerência em momentos chaves da trama como, por exemplo, quando Mogli é capturado e em seguida acolhido pelos humanos. A empatia dele com o caçador vivido por Matthew Rhys (The Americans) é pouco explicada, assim como sua repentina mudança de atitude com o mesmo após uma cruel descoberta.
Fora isso, em muitos momentos os efeitos especiais fazem com que enxergamos nas criaturas das selvas verdadeiros bichos animatrônicos dos anos 90. São poucos estes momentos, mas perceptíveis, tiram a atenção e, consequentemente, prejudicam a imersão.
Ainda sim, o elenco estelar escolhido para interpretar os animais esbanja empatia e traz novamente o público para dentro da selva, encantadoramente surreal. Blanchett surge enigmática e ambígua como Kaa, enquanto que Bale entrega uma aura fraterna para Bagheera e Serkis dá para seu Baloo uma personalidade mais sisuda que a versão vista na concorrência, o que acaba não sendo ruim.
No lado humano, o destaque mesmo é Chand e sua forte presença em cena. Em diversas ocasiões, o jovem ator segura a ação praticamente sozinho e exibe por meio de olhares os conflitos internos do protagonista. Mesmo simpática, Freida Pinto (de Quem Quer Ser Um Milionário) pouco pode fazer com o tempo escasso de tela, assim como o personagem vivido por Rhys.
Com uma trilha sonora decente de Nitin Sawhney (do jogo Enslaved: Odyssey to the West) e uma fotografia exuberante de Michael Seresin (Planeta dos Macacos), Mogli encontra muita dificuldade em gerar uma fábula mais coesa. Mesmo com carisma, ele definitivamente não é para crianças… Mas há dúvidas de que seja para um público mais adulto também, que busca por adaptações mais cruas de contos do gênero. Cabe ao espectador, enfim, decidir o seu lado nesta história.