Vencedor do Oscar 2018 por Melhor Roteiro com o longa metragem “Corra!”, Jordan Peele consegue mais uma vez levar o público ao auto-questionamento através do desconforto causado pelo terror com o filme “Nós”.
Tendo suas origens cinematográficas no gênero da comédia, o diretor, produtor e escritor do longa traz a medida perfeita da mistura entre riso e medo, realidade e ficção. À exemplo disso, logo de cara, Peele trama uma “pegadinha” com o espectador, que esperava que “Nós” seria uma continuação ou ao menos teria o mesmo tema racial apresentado em “Corra!”, uma vez que o elenco principal é também composto por atores negros. Dessa premissa surge então o levantamento que o diretor queria causar, o fato de o elenco principal ser negro não influencia no tema do filme. Ou seja, vemos como o racismo ainda é gritante quando, apenas pela cor da pele, já se supõe algo a respeito do que será apresentado na tela.
Desta vez, portanto, fica um pouco menos óbvio qual é a discussão política lançada em cena. Na trama, uma família, composta pela mãe Adelaide (Lupita Nyong’o), o pai Gabe (Winston Duke), a filha (Shahadi Wright Joseph) e o filho (Evan Alex), viaja para a casa de praia nas férias, porém acaba sendo aterrorizada por seus sósias bizarros, chamados no filme de “sombras”.
A cena inicial do filme é intrigante logo de cara, não aparentando ter quaisquer relações com a história que a segue. Mas numa pegada à lá Sherlock Holmes, todos os pontos se conectam no final. Em seguida, a trama começa em 1986, com o desaparecimento de uma criança dentro de um parque de diversões à beira da praia. Talvez de maneira proposital, o início do filme aponta na direção do terror clássico, com o uso do infantil e do inocente para provocar medo. Na verdade, só vemos as mãos de Peele fazerem sua mágica de fato no desfecho. Até o clímax do enredo, o que fica para o público é o terror clássico sanguinário, de fazer roer as unhas e pulsar os batimentos cardíacos no ritmo da música.
Lupita, vencedora do Oscar de Melhor Atriz em 2013 por “12 Anos de Escravidão”, não deixa a desejar nas expectativas do público. Contracenando consigo mesma, a atriz passeia, em sua interpretação visceral, entre o mais pitoresco terror que perfura o olhar, e toda a fragilidade e tensão que dá início ao clima de suspense do filme. Em contrapartida, dando vida à Gabe, Winston Duke rompe totalmente com os pontos de tensão com um personagem cômico, nadando contra o fluxo do enredo, num tom alheio e contrastante com a realidade em que as personagens estão inseridas. Os dois atores contracenaram também em Pantera Negra (2018), mostrando suas versatilidades cênicas. Também conta no elenco a participação de Elisabeth Moss, de “The Handmaid’s Tale”, com aparição breve, porém como sempre marcante.
Enquanto gênero terror, “Nós” vem mais agressivo que “Corra!”, com mais momentos de suspense e medo, intensificados brilhantemente pela arrepiante e ao mesmo tempo encantadora trilha sonora, ou pelos movimentos de câmera, repletos de closes que fazem o espectador se sentir na pele da personagem.
Mas afinal, qual é a crítica por trás deste palpitante terror? Os sósias buscam retratar tudo que há de pior em nós, nosso lado mais obscuro, levantando também a questão da desumanização do outro, com a premissa de prezar pela própria segurança. Tal analogia é percebida, dentre muitas vezes, através do personagem Gabe (Winston Duke), o qual reflete a personificação do “american way of life”, o conforto e a ignorância do que está alheio à sua bolha social.
Além disso, entrando mais profundamente nas possibilidades que percorrem “Nós”, o próprio titulo em inglês, “Us”, esconde a sigla para United States (Estados Unidos), além da tragicômica referência feita, no desfecho do filme, a Trump, permitindo também a interpretação da relação entre privilegiado e explorado. Nós seríamos os detentores de privilégio, e as sombras traduzem que, para cada um de nós, há alguém sem nenhum de nossos privilégios. Nós somos o reflexo da desigualdade social, nosso pior inimigo enquanto sociedade. Impossível, de tal modo, não estabelecer uma correlação com o fenômeno social da “luta de classes”, desenvolvido por Karl Marx, no qual a dicotomia das relações econômico-sociais seria a força motriz do capitalismo. Os interesses da classe dominante são atendidos às custas das classes inferiores. Inclusive, a sugestividade de uma suposta “revolução do proletariado” levada ao extremo no roteiro da trama, é a chave mestra que abre a porta do horror hipnotizante de “Nós”.
Para quem é fã de “O Sexto Sentido”, este é o filme que te fará sair do cinema buscando por respostas em um final repleto de cliffhangers. Quem está certo ou errado? O que é o bem e o mal? “Nós” é tudo aquilo que você não esperava de um filme de terror, mas ao mesmo tempo irá te deixar sem sono à noite.