Em um dos diversos episódios satíricos de “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, do magnífico Douglas Adams, acompanhamos a diminuta trajetória de uma baleia, criada através do gerador de improbabilidade infinita, de seu surgimento até o seu trágico fim.
Logo após surgir aleatoriamente a alguns quilômetros de distância da superfície e sofrer os impactos da gravidade puxando-a em direção ao solo, o animal não percebe a aproximação de sua inevitável morte enquanto se reconhece como um ser vivo e tenta desvendar todas as milhares de pequenas sensações que vivencia nessa trajetória.
Oxigênio, de Alexandre Aja, lembra muito essa premissa existencialista. Subvertendo a ordem da curta narrativa da baleia, ele usa o perigo iminente e a gradação de sua eloquência científica para progressivamente refletir sobre a existência humana e suas individualidades.
O filme narra a experiência de Omicron 267 ao ter de lidar com o mau funcionamento do processador de oxigênio de sua unidade futurista de saúde. Sem sair do mesmo ambiente, que mais parece um caixão, ela tem diversas descobertas tanto sobre si mesma quanto sobre a raça humana enquanto maneja seu próprio desespero para sobreviver à hostilidade daquele cenário.
A premissa, muito branda no começo, vai se alargando com o desenrolar da trama e a abrangência que o filme ganha ao longo de seus 100 minutos de duração é surpreendente. Como ele se desenrola majoritariamente dentro dessa mesma unidade de tratamento, é muito inventivo na hora de utilizá-la como parte integrante da narrativa, apertando a protagonista em momentos de desespero e amplificando o espaço quando convém ao espectador ter a noção plena do ambiente.
Há uma sequência, por exemplo, em que a personagem de Mélanie Laurent faz descobertas essenciais sobre sua situação e a câmera acompanha essa virada girando no espaço entre ela e a interface com quem conversa, explicitando assim a maneira que, de certa forma, seu mundo “girou”. Um outro momento bem significativo nessa relação com o espaço é quando tem a última conversa com sua mãe antes de perder completamente o sinal. Nele a câmera se distancia enquanto ela fica sozinha e apertada no quadro, cercada pela escuridão e a solitude que a cercam tanto fisicamente quanto emotivamente.
Como já foi pincelado no começo, Oxigênio se destaca na ótima progressão que faz de sua própria história. Ele começa simples, com a atriz encarcerada em uma maca futurista que parece ter sido projetada para lhe matar, e brinca com a ideia dela não lembrar nada sobre si mesma e imaginar que isso possa ser um golpe de algum inimigo. Todavia, a medida que novas descobertas vão sendo feitas, ele não se retém ao chocar o espectador com uma ficção científica muito mais ampla do que propõe no começo.
Ao mesmo tempo que cresce em um sentido bem literal da palavra: trazendo à tona um plano para salvar a humanidade de um vírus, quando conta com uma cena externa que reforça essa grandiosidade, ele se volta para o micro, com uma reflexão fundamental sobre a existência de Omicron 267 e quem de fato ela é.
Sem se segurar nos plot twists, por mais que em algumas horas ele se explique demais, o filme joga um gancho atrás do outro. Ao contrário do que esse recurso normalmente gera, o jeito que essas explicações mudam completamente a perspectiva agrega muito para a experiência. No começo ele mais parece um Kill Bill futurista, mas, ao longo de sua rodagem, sabe transitar disto para uma jornada de preservação da raça humana e posteriormente agrega como uma ficção científica que olha para dentro do ser.
No quesito filosófico, essa progressão é bem significativa e mostra como o Aja não está focado em jogar para o espectador esses dilemas éticos, mas sim em articular as reações de sua personagem estando no cerne de um deles. A beleza que reside quando Omicron se enxerga como um ser único e pede para que MILO renomeie sua cápsula está na forma que ele entende sua premissa e se pré-dispõe a criar um caminho próprio dentro do gênero.
Ao contrário de filmes como Ex Machina (Alex Garland, 2014) em que a criação se revolta contra seu criador em decorrência de todo mal que ele lhe fez, em Oxigênio a criatura não só vê propósito como abraça as memórias e as emoções que a cercam. De fato, ela nunca escolheu amar Leo, mas ao entrar em contato com o que é ser humano da maneira mais abrupta possível, na busca pela sobrevivência, ela pode ver que a vida é regida pela emoção, não pela razão. Uma proposição que, mesmo com todo o cientificismo que o filme despeja, é bem romântica.
Fora uma insistência sem sentido no susto, que quebra a aura sobrevivencialista do filme a apela para uma divagação pouco interessante sobre o ser contra sua mente, Oxigênio é uma ótima surpresa da Netflix. A ficção científica francesa se expande para o macro na mesma proporção que se retorce pelo micro e, com uma insistência dramática e uma exemplar utilização da linguagem para retorcer a imagem em prol de sua narrativa, tem o poder de embasbacar o espectador com sua amplitude.