Na escuridão reside muitas de nossas vontades. Todos nós possuímos desejos que são tão assustadores — até para nós mesmos — que preferimos escondê-los para fugir do julgamento alheio. Mas há um momento em que a sociedade não está vigilante. À noite.
Paisagem Noturna é um livro escrito por Bruno Machado que foi publicado de forma independente na Amazon. Para quem tem o plano Kindle Unlimited, o livro sai gratuito. O autor também produziu a capa e o vídeo imersivo, com composição musical de própria autoria.
A história começa investigando um crime. O detetive protagonista precisa encontrar o assassino de dois garotos de programas, um homem gay e uma mulher que foram mortos violentamente. Como eles estavam envolvidos com gente grande, a polícia sonda o crime por alto e fecha o caso quando as provas se mostram “insuficientes”. Mas o protagonista decide investigar o caso porque ninguém mais o faria. E mesmo as vítimas sendo prostitutas, elas são pessoas e merecem ter da polícia a mesma atenção que os outros teriam.
Hipocrisia
Logo de início, o leitor percebe que a polícia não está dando a mínima para o caso, primeiro porque envolve gente grande e segundo porque a sociedade não vai pressioná-la a chegar até o fim da investigação; ela não está nem aí quando uma “puta” e um “veadinho” são assassinados. E já nesse embate, é possível perceber a premissa da história.
O livro fala não só sobre preconceitos sociais, como aponta diretamente para a hipocrisia. Ao longo da narrativa fica claro que até mesmo o protagonista está no meio desse dilema moral que aflige todas as pessoas neste planeta.
Ao mesmo tempo que ele demonstra um ímpeto obstinado para encontrar o assassino dessas vítimas, ele vai abusando da autoridade que possui — muitas vezes através da violência — para conseguir respostas. O personagem também reproduz termos taxativos como “veadinho”, “puta” e outras nomenclaturas ofensivas, revelando a contradição de caráter existente nele.
Criar o personagem com esta contradição foi brilhante para explicitar a premissa da história, a hipocrisia. Porque revela que todos a praticam mesmo quando acreditam que estão agindo contra ela e que mesmo um policial, uma autoridade imparcial, não está imune.
Título e capa
A hipocrisia é a principal palavra que temos quando analisamos o título da obra. A paisagem noturna revela os desejos mais obscuros do ser humano que, à luz, ele condena veementemente. E isso acontece porque ele os possui, mas refreia para não ser julgado socialmente.
Nós, seres humanos, estamos constantemente destilando julgamentos sobre o caráter e sobre a moral das pessoas. Apontamos nelas tudo o que repudiamos, mas quando a cidade vai dormir, praticamos os mesmos atos que condenamos.
“O que o Justine oferece é a viabilização desses fetiches, sem complicação. O cara chega e recebe o que quer, seja um carinho nas bolas ou uma suruba com anões”
A noite então revela toda a concretização desses desejos refreados. E, assim como nós meros mortais, as pessoas do alto escalão — juízes, promotores e empresários — também procuram a hora em que sociedade dorme para dar vasão aos seus instintos. O livro se foca neles.
É por isso que as vítimas não poderiam ser outras senão prostitutas. Elas são relegadas à escuridão para satisfazer os desejos mais reprimidos e violentos que as pessoas possuem. Mas quando algo dá errado, quem vai defender essas pessoas? O livro mostra brilhantemente que a sociedade, com certeza, não levantaria um dedo, a não ser para apontar que eles “estavam sujeitos a isso”.
A capa já apresenta as críticas do livro. A imagem inevitavelmente simboliza Deus, portanto acaba provocando os leitores com o batido sermão cristão: “apenas Deus pode julgar o homem”. Essa provocação é interessante porque o cristianismo predomina a moral dos brasileiros, e justamente por isso é a grande mãe da hipocrisia no país.
Todavia, se analisarmos bem a capa, percebemos que ela não traz Jesus exatamente. É uma crucificação que o simboliza, sim, mas o que ela traz, de verdade, é uma pessoa comum sem distinção de gênero, podendo ser um homem hétero, uma trans, uma mulher cis… Ou seja, qualquer um de nós pode ser a pessoa crucificada da capa.
Esse jogo de imagens acusa a maestria do autor ao mexer com os sentidos, apontando diretamente para a reflexão que ele está propondo: a sociedade crucifica diariamente uma parcela marginalizada da população, baseando-se nas doutrinas de uma religião criada por um homem marginalizado. Olha que hipocrisia clara.
Sim, Jesus foi um homem marginalizado e contraventor porque na sua época, a civilização e as leis que a regiam eram majoritariamente romanas e, ao pregar suas filosofias, Jesus acabou indo contra o império.
O Autor
Bruno Machado tem uma experiência extensa como repórter policial no interior de São Paulo. E isso torna tudo mais espantoso, pois ele se baseou em muitos casos que cobriu para escrever o livro. Quando você lê as cenas e percebe que o autor está descrevendo uma conduta real da polícia, que realmente ocorre no dia a dia, você fica abismado. Afinal a gente sempre ouve falar disso, mas ver é muito mais chocante. Porém, também é reconfortante saber que ainda existem aqueles comprometidos com a justiça.
Ele começou a escrever o livro em 2007, mas o deixou de lado porque na época a autopublicação ainda não estava muito avançada e ele não se sentia pronto para lançar um romance em formato impresso. Ele retomou a escrita do livro apenas ao final de 2020, quando então concluiu a história.
Bruno se inspirou em nomes como Rubem Fonseca, Stephen King, J. M. Coetzee, mas principalmente em James Ellroy.
O estilo de escrita de Bruno é direto e pausado. Ele escreve priorizando o que precisa ser dito e não perde muito tempo em explicações. E isso funciona bastante com caráter do protagonista, que é uma pessoa séria e fria. Como o livro é narrado em primeira pessoa, há a presença de muitas gírias regionais para ambientar a história e configurar o espaço-palco da obra. Esse detalhe, porém, pode atrapalhar um pouco a leitura dependendo da região do leitor.