“Queer” é o segundo filme do diretor Luca Guadagnino lançado em 2024; com estreia no 81º Festival Internacional de Veneza – concorrendo ao Leão de Ouro, e indicação ao Globo de Ouro junto ao primeiro filme lançado “Rivais” (Challengers).
Guadagnino traz mais uma vez o tema recorrente em suas obras: a representação do desejo e da tensão nas relações entre os personagens. Nessa temática que atravessa as obras do diretor italiano, é impossível não trazer comparações da nova obra com o filme “Rivais” (Challengers), ainda fresco dentre os lançamentos do ano. Mas, se no primeiro Guadagnino traz as relações do desejo como um gatilho para a construção do jogo emocional entre o trio de personagens, em “Queer” o diretor apresenta a angústia de um jogo unilateral, sobre uma paixão não correspondida.

“Queer”, escrito por Justin Kuritzkes, mesmo roteirista de “Rivais” (Challengers), traz uma trama baseada no livro homônimo de William S. Burroughs, um dos grandes nomes do movimento literário beat, uma geração de escritores da contracultura norte-americano que surgiu nos anos 1950 caracterizada por com um estilo narrativo intenso, com a valorização da transmissão oral e a busca por experiências transcendentais. O livro conta a história de William Lee – um alter-ego do autor, no filme protagonizado por Daniel Craig, que vive como um expatriado na Cidade do México na década de 1940.
Com uma direção que mistura uma montagem ritmada com closes e planos detalhes, mesclada à cenas longas que acompanham a ação dos personagens respeitando o seu tempo, muitas vezes ainda com a imagem em câmera lenta, além da trilha sonora marcante e envolvente assinada mais uma vez por Trent Reznor e Atticus Ross, o filme garante ao espectador uma composição exuberante e um mergulho a uma narrativa que traz e leva ao tom que deseja envolver a quem está assistindo.

O filme, com 136 minutos de duração, é dividido em quatro partes, recurso já carimbado em outros filmes do diretor como “Me Chame Pelo seu Nome” e o já citado “Rivais”.
Em sua primeira parte, a trama se ancora na atuação de destaque de Daniel Craig que nos leva a acompanhar o dia a dia do protagonista e seus amigos, revelando a sua relação sob um olhar nada sutil de Guadagnino para representar a comunidade queer e a sociedade pós guerra.
Com uma fotografia de destaque de Sayombhu Mukdeeprom, que ambientaliza a Cidade do México na década de 1940, acompanhamos a rotina de Lee, entre bebedeiras no bar do amigo Joe (interpretado por Jason Schwartzman) e a busca por possíveis amantes para relações puramente corpóreas. A chegada de Eugene Allerton, interpretado por Drew Starkey, sublinha a vida solitária de Lee, que se agarra na tentativa de construir uma relação amorosa com o jovem que nunca se mostra totalmente envolvido com o protagonista.
É nesse jogo instigante entre os personagens, que agora buscam espaços para se encontrarem nos interesses de cada um nesta relação, que Guadagnino releva o que o têm de melhor como diretor: o talento em filmar o desejo e a tensão entre os personagens.
Diferente de “Me Chame pelo seu nome” e “Rivais“, desta vez, o diretor não se preocupa em afastar, de imediato, a câmera dos momentos íntimos entre Lee e Allerton, estampando uma sequência de cenas intensas de desejo e corpo-a-corpo entre os personagens. É uma obra à parte ver Daniel Craig se despindo da sua imagem de galã James Bond construída nos últimos anos de sua carreira como ator para dar vez a um personagem submisso e desesperado por atenção e prazer, o que sustenta com singularidade a narrativa do filme neste primeiro capítulo.

Guadagnino brinca com a truncagem de cenas sobrepostas em que vemos Lee tocar e acariciar o amante em uma espécie de ilusão, ou possibilidade de realidade que tanto deseja, além da construção de sequências surrealistas que podemos acompanhar durante as alucinações do protagonista durante os efeitos da heroína e do álcool. Toda essa construção traz uma simbologia visual que intensifica a trajetória de angústia que o personagem vive diante da relação vivida com o jovem Allerton e o mundo à sua volta.
A trama se desenvolve com a obsessão revelada de Lee pela planta Yagé, um psicotrópico que é referido como um capacitante mental para desenvolver a telepatia. O primeiro ato do filme se encerra, para dar vida ao segundo capítulo do filme, quando o Lee convida Allerton para uma aventura na América do Sul, em busca da planta Yagé. O acordo traçado pelos dois como condições para estarem juntos como companheiros de viagem, ressalta ainda mais, pelo menos para nós espectadores, a divergência de interesses de cada personagem na construção desta relação.

A segunda parte do filme, com um capítulo que traz um título que brinca com a história que está por vir – “Companheiros de Viagem”, vem como uma expansão da obra original de Burroughs e é perceptível a mudança no tom que a narrativa assume.
O vício em opióides de Lee é intensificado por uma abstinência, o que torna a primeira sequência de cenas quase meio deslocada, mas que de certa forma acentua muito da relação dos personagens na carência de Lee em ser amado e na resistência de Allerton em se envolver emocionalmente na relação.
A então busca pela planta Yagé se revela como uma esperança do protagonista de alcançar essa telepatia junto ao seu amante, ou como ele mesmo descreve no filme, uma comunicação não verbal, a nível de instituição. Depois de muitas paisagens, Lee encontra um cientista que lhe oferece um mapa de acesso à Yagé, que o leva a uma aventura no meio da floresta Amazônica, com planos fechados e um teor quase cômico que nos relembra os filmes de aventura da década de 80/90.

Mas é ela que nos leva a vivenciar a parte mais intensa do filme, tanto em narrativa quanto em recursos de imagem e sonoro e na apresentação de simbolismos e imagens surreais. Lee e Allerton vivem a tão esperada viagem psicodélica após uma cerimônia de Ayahuasca e toda sequência que acontece a partir deste ato é impressionantemente bonita, intensa e devastadora.
O vômito do coração que eles compartilham como primeiro efeito, colocando ao chão todas as amarras sentimentais, a transparência que a imagem dos seus corpos assumem enquanto se olham, nesse desaparecer de um para o outro e enfim, a dança dos corpos que se fundem e se devoram em um desejo ardente e profundo.
Mais ainda o que resta depois de tudo, ou talvez a falta de coragem para lidar com o entendimento desse todo e a decisão de não seguir nessa viagem de autoconhecimento individual e da relação, o que encerra a trajetória dos dois personagens.
A narrativa termina de forma melancólica, com reencontros e perdas, e um simbolismo impactante da busca pelo amor correspondido e pelo afeto. “Queer” é um filme sobre a solidão, sobre desencontros e frustrações que nos marcam por uma vida e nos colocam nessa eterna busca de espelhos que nos ajudam a enxergar quem somos e o que somos nos outros.