Springsteen 11

Crítica | ‘Springsteen: Salve-me do Desconhecido’ e o valor do silêncio na música e no cinema

Springsteen: Salve-me do Desconhecido estreia em 30 de outubro e mostra Bruce Springsteen criando Nebraska em meio a crise pessoal.

5 Min Ler
10 Perfeito!
Springsteen: Salve-me do Desconhecido

Quando falamos em cinebiografias musicais como Springsteen: Salve-me do Desconhecido, é quase inevitável pensar no desgaste do gênero. Depois de “Bohemian Rhapsody” (2018), o modelo se cristalizou em fórmulas previsíveis: ascensão meteórica, queda emocional e uma catarse triunfal. Mas, de tempos em tempos, surge uma produção que desafia esse molde. “Springsteen: Salve-me do Desconhecido”, dirigido por Scott Cooper e estrelado por Jeremy Allen White, é uma dessas raridades.

Adaptado do livro “Deliver Me From Nowhere: The Making of Nebraska”, de Warren Zanes, o filme acompanha Bruce Springsteen no início da década de 1980, logo após a turnê de The River. No auge da fama, o cantor se vê esgotado, mergulhado em uma crise de identidade e na sombra de traumas antigos. Em vez de buscar o espetáculo, ele se isola em Nova Jersey com um gravador de quatro faixas, onde cria Nebraska — um dos álbuns mais crus, íntimos e dolorosos da música americana.

Springsteen: Salve-me do Desconhecido

A decisão de Cooper em se concentrar nesse recorte é seu maior acerto. O filme não tenta condensar toda a vida de Springsteen em duas horas, nem disfarçar eventos para caber em uma estrutura comercial. Ele é despretensioso e contemplativo, revelando com cuidado o homem por trás do mito. O tom melancólico é reforçado por imagens de Bruce dirigindo por estradas desertas, caminhando pela praia de Asbury Park ou revivendo lembranças em meio ao som abafado de fitas cassete.

Em uma das cenas mais simbólicas, Bruce e o pai assistem “O Mensageiro do Diabo”, de Charles Laughton — uma lembrança que se funde à própria essência de Nebraska, nascida de fantasmas pessoais e da depressão que o músico enfrentava. Suas obsessões culturais também marcam presença: “Terra de Ninguém”, de Terrence Malick; o assassino Charles Starkweather; as histórias sombrias de Flannery O’Connor; e o punk minimalista do Suicide. Cada referência molda o olhar de um artista tentando compreender o colapso físico e mental que vivia, enquanto refletia sobre o fracasso moral da América.

Jeremy Allen White entrega aqui uma de suas atuações mais maduras. Ele não é uma cópia física perfeita de Springsteen — e isso é justamente o que torna sua performance especial. White encarna o cantor a partir de dentro, com gestos contidos, olhar inquieto e uma melancolia que lembra Carmy, de “The Bear”. Suas performances de “Born to Run”, “Nebraska” e “Born in the U.S.A.” impressionam não pela semelhança, mas pela emoção genuína.

Springsteen 1

Jeremy Strong também brilha como Jon Landau, o produtor e parceiro criativo de Bruce. Seu personagem representa o equilíbrio entre o pragmatismo e o cuidado, funcionando como um espelho emocional do protagonista. Odessa Young, como Faye, e Paul Walter Hauser, como Mike Batlan — o responsável por gravar Nebraska em uma fita cassete — completam um elenco que entende perfeitamente a delicadeza da proposta.

Scott Cooper faz de Springsteen: Salve-me do Desconhecido um filme sobre silêncio, introspecção e propósito. Ao contrário de “Bohemian Rhapsody”, que se apoia em momentos de glória, ou de Rocketman, que abraça o musical para amplificar Elton John, aqui o espetáculo está na ausência dele. As apresentações ao vivo são poucas, quase sempre interrompidas, reforçando o afastamento de Bruce de sua própria imagem pública.

Springsteen

Essa contenção torna o longa uma obra de forte identidade. O diretor captura o que há de mais humano em Springsteen: o medo, a solidão e o desejo de encontrar significado em meio ao caos. Tudo é filmado com um respeito que evita a hagiografia — o retrato do “herói americano” é substituído por um homem tentando sobreviver à própria fama.

Assim como “Um Completo Desconhecido”, a cinebiografia de Bob Dylan estrelada por Timothée Chalamet, “Springsteen: Salve-me do Desconhecido” é um passo importante para o subgênero. É um filme que não se rende ao glamour nem à nostalgia, mas prefere observar o artista em sua fragilidade. Bruce não é tratado como um produto, e sim como alguém que transforma dor em poesia.

No fim, Springsteen: Salve-me do Desconhecido de Cooper é o reflexo de seu protagonista: honesto, apaixonado e movido por um senso de propósito. É uma cinebiografia que fala sobre o peso de ser quem se é — e sobre o preço de continuar criando quando a própria arte se torna um espelho.

Springsteen: Salve-me do Desconhecido está em exibição nos cinemas.

Springsteen: Salve-me do Desconhecido
Perfeito! 10
Nota 10
Compartilhe este artigo