Confesso que não sabia como começar a falar de Wicked. Com meu conhecimento modesto sobre teatro musical e todos os burburinhos que cercam essa adaptação para o cinema, tive receio de não fazer jus ao que levar a Broadway para o cinema significa.
Musicais se tornaram o inimigo número 1 de muita gente, principalmente nas últimas décadas, além de sinônimo de breguice, infantilidade e principalmente falta de caráter artístico. Pessoas cantando e dançando “do nada” é não só constrangedor, como completamente inverossímil.
Depois do fracasso retumbante da adaptação cinematográfica show de horrores de outro musical muito querido, Cats, a notícia de que Wicked também se tornaria filme foi recebida como apreensão pelos fãs de teatro musical.
O medo dos desafios inerentes de mudar de meio artístico é dono de grande parte dessa grande apreensão, ainda mais quando falamos do quinto musical mais longevo da história da Broadway. Em cartaz desde outubro de 2023, Wicked conquistou uma nação de fãs muito dedicados e uma vida própria que de certeza torna transformar anos de história, convenções do gênero, artistas e performances num filme algo perto da heresia para muitos.
E vida própria é o que Wicked mais têm. Baseado no livro de Gregory Maguire “Wicked: A história não contada das bruxas de Oz”, que narra todos os entraves e provações do relacionamento entre duas bruxas: Elfaba, a Bruxa Má do Oeste e Glinda, a Boa, tanto antes quanto depois da visita de Dorothy a Oz.
O caráter derivado da alma da obra já torna a entrada nesse universo um pouco entravada, já que pra muitos é pedir demais ver a história clássica do Mágico de Oz, com algo que na superfície parece ser apenas uma fanfic de universo alternativo sobre “o que aconteceria se duas bruxas inimigas fossem estudar em uma escola de magia?”
“Como juntar essas duas forças antagônicas que tornaram Wicked a potência da cultura pop que é hoje, em algo esplendoroso?” Essa é a grande indagação que a produção do longa precisa responder.
E pra alegria de muitos, a resposta é fabulosa.
Apesar de muito criticada e questionada, Ariana Grande dá vida a uma Glinda fantasticalíssima. Talvez com uma veia um pouco mais ácida de menina malvada quando comparada à Glinda espirituosa, ingênua e que vive no mundo da lua da produção teatral.
Porém, de forma alguma, a interpretação da Ariana se torna caricata, inclusive é o antônimo da caricatura. A Galinda do filme é de fato esnobe, interesseira, manipuladora e completamente descolada da realidade.
A mistura desses adjetivos com certeza corre o risco de cair no estereótipo da patricinha fútil, mas simplesmente a Galinda tem coração, alguma coisa, um “it factor” que faz funcionar. Esse it factor, atravessa Oz todinha e faz essa adaptação caminhar pelas próprias pernas.
O filme não se leva a sério e a irreverência se transforma na magia daquela terra encantada. Se toda a estrada de tijolos amarelos levam a Oz, nada mais justo do que fazer desses caminhos uma fantabulosidade visual. Um dos aspectos mais importantes quando falamos de universos fantásticos é a ambientação.
O mundo do Mágico tem seu alicerce nos pequenos detalhes, os cenários de conto de fadas têm um ar irreal e verdadeiro ao mesmo tempo. De fato, algumas paisagens e construções, como a universidade de Shiz têm uma estética de “conto de fadas para adultos”, mas de alguma forma o lúdico da fantasia não é perdido.
Shiz salta aos olhos porque destoa, da melhor forma possível, do que entendemos por escola de magia. As cores são vivas e delicadas, a arquitetura do prédio divertida que abusa das linhas orgânicas e dá a sensação de que cada tijolinho é mágico. A imaginação ganha vida naquela biblioteca tão magnífica e inventiva, que se organiza como biblioteca mágica mesmo. Com decorações, apetrechos e engenhocas que dão vontade de ficar horas a fio ali dentro, submergido na magia do lugar.
A exploração da magia de Oz está até nas armações dos óculos dos habitantes, na penteadeira da Glinda, na boate onde os estudantes fazem a festa, no beija-flor manicure. Dizem que o diabo está nos detalhes, e bem, o atentado do Mágico de Oz roubou as cenas para os detalhes dele.
Poucas coisas são tão carismáticas como animais falantes, e cada uma das criaturinhas de Oz é de uma delicadeza sublime. Fazia tempo que eu não via animais falantes tão cativantes, em especial o Dr. Dillamond, a cabra que leciona na universidade e é dublada de forma incrível por Peter Dinklage. Também é impossível não virar manteiga derretida com a dupla do cavalo falante e príncipe encantado, que aparecem pouco em ação mas encantam muito.
Jonathan Bailey interpreta o príncipe da vez, Fiyero, com todo charme e habilidade de quem é um dos maiores galãs de ” Bridgerton”.
O teatro musical e o cinema, apesar de serem mídias distintas, têm em comum usar do audiovisual para contar uma história e transmitir sensações e nada que é mostrado em Wicked é por acaso. Os guarda-roupas escalafobéticos refletem os personagens, plumas, organzas, tules, rendas, texturas trabalham duro para evocar a personalidade das personagens.
A Cidade de Esmeraldas é um deslumbrante sonho steampunk que começa quando embarcamos no trem dirigido por um simpático maquinista bigodudo e chega ao seu ápice quando o próprio Mágico nos mostra a sua maquete de Oz.
A cena da maquete de Oz vai ficar muito tempo comigo e exemplifica maravilhosamente bem o je ne sais quoi do filme. O contraste entre a quantidade de efeitos de computação gráfica com a delicadeza daquela cena, com os detalhes de uma feira de invenções vitoriana, do cinema de “Viagem à luz (1902)” me deixou sem palavras.
Apesar de arrasar quarteirão – quase que literalmente – a Cidade de Esmeraldas trás uma questão importante do filme: os efeitos visuais são de fato belos e inspirados, porém é inegável que conforme o filme vai passando causam certa fadiga nos olhos do espectador. Entretanto, a direção de arte parece estar atenta quanto a isso, usando truques de cores e iluminação que dão mais o ar de “conto de fadas” do que de “artificial”, visualmente.
O uso das cores é enfatizado desde as primeiras fotos promocionais, rosa e verde representando o ying-yang das personalidades de Glinda e Elfaba, e também é utilizado de uma forma super interessante ao chegarmos na Cidade de Esmeraldas.
Apesar da Elfaba também ser verde como a cidade, o verde da cidade do Mágico de Oz ainda não permite que ela se camufle, ou até pareça com alguém natural de lá. Reforçando que ela ainda não pertence ali, e que o que a move é muito mais profundo do que uma mera questão estética.
Elfaba essa interpretada por uma Cynthia Erivo que está tão confortável no papel quanto um craque na Camisa 10. Já tendo inúmeras participações na Broadway fica claro que a atriz sabe o que faz e sabe que o faz bem.
Acredito que seja importante, ao falar principalmente das performances musicais, que existe uma paixão e reverência enorme das atrizes principais pela obra. É nítido que houve grande apreço na criação e interpretação das canções originais da produção da Broadway.
Se elas fazem jus à sua musa teatral é uma questão mais complexa. Os esforços para trazer a linguagem musical pro filme são claros, com momentos de “cantarolices” na fala das personagens assim como o destaque dos protagonistas nas cores e figurinos quando comparados ao conjunto. Senti o peso e a seriedade que as performances exigem em momentos críticos da trama, e saí sim bastante emocionada.
Porém essa perspectiva será extremamente pessoal e mutável, principalmente para aqueles que tiveram o privilégio de assistir a montagem teatral ao vivo. Esses mesmos que com certeza terão uma visão mais especializada dos aspectos técnicos e visuais de uma performance desse nível.
Inevitavelmente, Wicked terá como seu maior carrasco a barreira – muitas vezes intransponível – entre os meios do cinema e do teatro musical. Porém, vale a pena a reflexão sobre o desafio que foi contar essa história nas telonas e como foi um trabalho hercúleo de amor, já que poderia ter sido mais uma tentativa fútil e vazia de retomada a Oz, como vimos na adaptação “Oz Mágico e Poderoso”.
A tenacidade, principalmente das atrizes principais, de fazer essa produção é admirável e muitas vezes comovente, mas a partir do momento em que se decide adaptar um musical que está nos anais da Broadway para todo o eterno sempre, sabe-se que os que o conhecem serão os mais ferrenhos críticos. E talvez sejam os juízes que mais decidirão o sucesso dessa empreitada cinematográfica.
Wicked é uma extravagância de malvazade de brilhar os olhos, que vale a chance daqueles que a conhecem de outros carnavais, assim como uma fabulosa passagem de introdução para o mundo artístico do teatro musical para o público geral.