Durante 16 anos (de 1959 até 1975) tropas estadunidenses contra a ameaça comunista ocuparam o Vietnã em um dos conflitos mais sangrentos e polêmicos da Guerra Fria. Nesse mesmo período, a luta por direitos civis fervilhava nos Estados Unidos, com grandes nomes questionando a estrutura de poder vigente na época. Esses dois acontecimentos estão intrinsecamente conectados já que, enquanto a população americana era 11% negra, os soldados afro-americanos eram mais de 30% das tropas enviadas para a guerra.
A partir desse cenário, se desenrola o filme de Spike Lee, “Destacamento Blood”, em que quatro amigos veteranos de guerra, voltam para região do conflito não só para resgatar os restos mortais de seu antigo comandante, como também para recuperar um antigo tesouro vietnamita que deixaram escondido por lá.
Durante toda sua carreira, a luta racial sempre foi um tema largamente abordado. O próprio Infiltrado na Klan (2018) – que inclusive deu para ele o seu primeiro Oscar – para pegar sua filmografia mais recente, é um ótimo exemplo disso. Mas o que ele faz de melhor em sua última obra é repetir na medida certa a dose de um aspecto extremamente presente em um de seus primeiros filmes (e sem sombra de dúvidas o mais aclamado deles) Faça A Coisa Certa (1989).
Enquanto muitos diretores gostam de abusar da crítica unilateral em seus trabalhos, Lee é um dos poucos com a habilidade de questionar o espectador com problemáticas que talvez não tenham resposta. Ele constrói as personagens muito mais como fruto da sociedade do que como peças individualistas atreladas exclusivamente a obra. Em seu filme de 89 ele pontua o atrito entre a população negra e ítalo-americana no dia mais quente de Nova Iorque. Acostumadas a sofrer e conviver com o preconceito em diferentes escalas, ambas coabitam sempre colocando a opressão e a culpa nas costas do outro.
Destacamento Blood transporta esse mesmo atrito para um outro território tão problemático quanto. Sem se repetir, Spike sabe colocar seu espectador em cima do muro e mostrar para ele que os dois lados que consegue enxergar não são tão dicotômicos quanto lhes foi proposto.
De certo esse é um filme violento. Sempre bem gráfico e explicitado em tela com recortes de cenas reais, nada plástico e nem fantasioso. Enquanto a ficção é envolvente e muitas vezes se destaca pelas doses cavalares de tensão, ele faz questão de retomar o foco para a realidade. Ao mesmo tempo que usa esse recurso para explicitar toda a agressividade inerente à guerra, também o utiliza para honrar a memória de todos aqueles envolvidos em sua carnificina.
Constantemente, quando as personagens falam de alguém real, uma imagem ou vídeo pipoca na tela. Nesse elemento vemos Lee tentando prestar um certo tipo de homenagem para as pessoas referenciadas, afinal de contas, ele não deixa que seus nomes sejam meras palavras ao vento ou que suas fotos apareçam sem destaque, frias em uma revista, jornal ou álbum de fotografias. Ele para seu filme para deixar claro que essas pessoas tinham nome, imagem e relevância.
O diretor sabe explorar o universo do filme muito bem ao, na montagem, paralelizar passado e presente, lentamente revelando quais eventos de outrora reverberam na contemporaneidade das personagens. Paul foi claramente o mais afetado, os fantasmas da guerra ainda o perseguem e ele carrega completamente sozinho a culpa de, por acidente, ter baleado seu líder.
De quebra, também há a constante sobreposição entre a poesia heróica e a realidade de guerrilhas. A própria sequência de sua morte em que, logo após ter conseguido o seu tão sonhado perdão de uma forma quase lírica, ele recebe a violência inata ao ambiente e a situação que está inserido é um ótimo exemplo disso.
Uma pena que essa significação toda se perca na parte final. A sobriedade dentro daquela história complexa e tragicômica acaba dando lugar para uma ação batida. Mesmo assim, a última cena é bem significativa. Quando David (Jonathan Majors) acerta a cabeça de Desroche (Jean Reno) fica clara a relação que constrói para dizer que a luta sempre tende a crescer e perdurar uma resistência contra a opressão, afinal, bloods não morrem, eles multiplicam.
Para finalizar, Spike Lee ainda confere essa nova perspectiva para a Guerra do Vietnã. O desastre militar escancarado, que Hollywood sempre tentou esconder através de grandes proezas cinematográficas, agora é posto não só como um fracasso bélico, mas também social. Ele consegue não só mostrar com proficiência a sua visão sobre o conflito, como também evidencia uma guerra diária contra o racismo que é tão sangrenta e violenta quanto.
Esse filme é, sem sombra de dúvidas, o maior injustiçado da 93ª edição do Oscar. Amargando apenas uma indicação de Melhor Trilha Sonora, o filme foi deixado de lado nas principais categorias da premiação. Tanto Spike Lee quanto Delroy Lindo mereciam o devido reconhecimento pelo seu trabalho e é uma pena que, principalmente no caso de Spike, eles tenham sido deixados de lado. No balanço das almas é a premiação que perde credibilidade por esquecer, mais uma vez, um filme tão categórico.