É sempre uma boa notícia o lançamento de um filme de David Fincher – você gostando dele ou não, a filmografia do diretor tem pontos de grande importância para cinema realizado nos últimos 30 anos. Esperar algo diferente do diretor é sempre uma possibilidade, mas dessa vez ele conseguiu surpreender até aqueles que mais conhecem seu estilo e obra.
Inspirado na história do roteirista Herman J, Mankiewicz (Gary Oldman), em “Mank” vemos a Hollywood dos anos 1930 através de seus olhos enquanto ele escreve o roteiro de “Cidadão Kane”, isso tudo em meio ao seu problema com o alcoolismo.
O longa é uma viagem sinestésica aos anos 1940 do início ao fim. Desde os letreiros iniciais, em preto e branco, com um estilo de lettering indissociável aos filmes da era de ouro hollywoodiana, já somos afundados em um outro tempo. Os créditos iniciais ao estilo dos filmes da primeira metade do século XX nos permitem compreender instantaneamente qual a proposta aqui.
Aqui, David Fincher tenta emular a experiência de assistir um filme em uma sala de cinema nos anos 1940. Para isso, ele se utiliza de todos os recursos possíveis para fazer com que o espectador fique imerso neste mundo. A fotografia é o primeiro elemento aliado do diretor para realizar a tarefa. Assinada por Erik Messerschmidt, a direção de fotografia é monocromática e com aspecto de filme analógico que dá o tom do passado, apesar de mesclar com aspectos modernos. Os ângulos de câmera são inspirados na filmografia de grandes diretores como John Ford, Frank Capra e George Stevens.
O design de som é o segundo maior maior aliado do diretor para fazer o mergulho ao passado que pretende – e consegue. O som é propositalmente degradado para ter a sensação de uma captação antiga. Sua mixagem é notável e sem ela não seria possível acreditar que estamos de fato vendo um longa-metragem sexagenário. O design de som é assinado por cinco pessoas: Ren Klyce, Jeremy Molod, David Parker, Nathan Nance, e Drew Kunin. A cereja no bolo, aqui, é o efeito de reverberação por todo o filme, que trabalha exatamente o imaginário de se estar em uma sala de cinema.
O parceiro de longa data de Fincher, Kirk Baxter, é quem edita o filme com cortes sutis e bruscos simultaneamente. Todos os fade ins e fade outs são extremamente bem executados, além da progressão dramática num timing milimétrico – nós sentimos cada um dos cortes. O trabalho é primoroso e incorpora falhas propositais para emular suas inspirações analógicas.
A atuação de todos que estão aqui são excelentes, Amanda Seyfried se destaca, mas Gary Oldman é assustadoramente bom. O papel é um desafio para qualquer pessoa, por se tratar de um alcoólatra com outros problemas de vício e uma auto-demanda de escrita criativa, somado a uma quantidade de cultura colossal. Oldman é o homem certo para o papel. Gary consegue incorporar todos os elementos mais profundos do personagem e o resultado é uma atuação que merece o Oscar de melhor atuação em 2021.
O roteiro é um ponto divisor. Precisamos nos ater um pouco aqui porque sua complexidade é também uma falha. Escrito por Jack Fincher, pai do diretor, o filme tem uma dose de intelectualidade grandiosa e em muitas vezes faz com que o espectador médio não compreenda exatamente o que está sendo discutido.
A discussão política no filme é incrível e deixa no chão qualquer outra produção hollywoodiana dos últimos quase 10 anos, que mais parecem um texto de facebook ao lado de um livro de história e filosofia. Discussões acerca de uma sociedade de mercado, socialismo e comunismo em um nível que é prazeroso a qualquer fã de George Orwell ou Eric Hobsbawm. No entanto, o filme necessita que o seu espectador compreenda pregressamente a história política americana e, por isso, perde a sua força maior – sendo realmente cansativo em certos momentos.
O outro ponto, esse mais crucial, é a NECESSIDADE de ter visto o filme “Cidadão Kane”. Inúmeras referências diretas ao filme, parábolas com outras obras da literatura como “Don Quixote” ou Shakespeare, além da alusão ao cinema contemporâneo de Orson Welles. Logo, se você não consegue captar as referências e a importância de “Cidadão Kane” para a história do cinema, o filme corre risco de nem fazer sentido para o espectador.
Junto disso, o filme faz metalinguagem com a própria escrita de roteiros – um público ainda mais seleto. Logo, o que poderia ser um tiro fatal e que transformaria o filme em genial, acaba saindo pela culatra – eu me pergunto como o diretor Quentin Tarantino se sentiu ao ver esse filme… pagaria para ver uma palestra dele sobre esse longa-metragem.
Com 131 minutos de duração, “Mank” é um desafio ao espectador por ser denso e complexo em todas as suas camadas. O filme chega a ser cansativo em alguns momentos, no entanto, é compensado desde o início por seu primor técnico e grandiosidade em todos os aspectos de sua concepção. A atuação de Gary Oldman é um presente a qualquer espectador que se propõe a ver o filme e é ele quem faz o elo principal elo com a audiência.
David Fincher surpreende e se reinventa mais uma vez com “Mank” e não deixa dúvidas de que é um dos diretores mais talentosos de sua geração – uma coisa é certa: o filme não será esquecido, mesmo se não vencer nenhuma das 10 categorias a que foi indicado no Oscar.