Fábulas são, em seu uso mais comum, trajetórias que evocam um certo tipo de moralidade. Como um reflexo da vida comum através da fantasia, elas trazem dramas e dilemas cotidianos através de explicações metafísicas, sempre se apoiando na “moral da história” para entregar ao seu público algum tipo de lição ou ensinamento que pontue o final da história.
Wolfwalkers, de Tomm Moore e Ross Stewart, é uma utilização muito interessante dessa premissa: um conto que, através de um desenrolar simples, desenvolve muito bem seu discurso social sem abraçar um teor panfletário.
Acompanhamos a jornada de Robyn, uma garotinha inglesa que se vê presa à vida doméstica após a sua mudança para a Irlanda. Seu pai, um caçador, é incumbido pelo governante da cidade em que vivem a se livrar de todos os lobos que habitam na floresta, dessa forma, ele poderia expandir seus domínios.
Um dia, ao fugir de seus afazeres, a garota é atacada por uma matilha, mas ao invés de ter sua vida colocada em perigo ela conhece Mebh, uma metamorfa que se transforma em lobo ao dormir e, na ausência de sua mãe, é responsável por controlar os caninos e supervisionar a floresta. As duas se tornam amigas e embarcam em uma jornada para proteger o lar dos animais do temível expansionismo britânico.
Aqui encontramos uma narrativa que sabe se desenvolver de mãos dadas ao folclore e não se apoiando nele. É comum vermos mitos gregos, nórdicos e até mesmo hebraicos ganhando destaque e desenvolvendo os mesmo temas em diferentes mídias, mas em Wolfwalkers os diretores sabem priorizar o cinema, deixando que o âmbito lendário se alastre só até onde lhes é conveniente.
Por exemplo, existem alguns temas que movem o filme, fora a clara relação com a preservação da natureza e toda a parábola de se julgar um livro pela capa, fica bem clara a íntima relação que o filme tem com o que é ser livre.
As personagens experienciam seus piores momentos quando são, de alguma forma, encarceradas. Evocando o pensamento de Sartre, é como se a liberdade fosse uma condenação irrevogável humana e tanto Robyn quando Mebh vivenciam isso. A menina, ao não poder explorar a natureza, é condenada aos afazeres domésticos que detesta e a Wolfwalker fica longe de sua forma, de seu verdadeiro estado de existência, quando capturada.
Podemos ver essa mesma relação até mesmo no grupo de crianças que vagam pela cidade quando, seguindo o exemplo do regente, enxergam na jaula um instrumento de controle, poder e opressão e ameaçam o diferente da protagonista com isso.
É impressionante como a direção de arte amplifica não só esse como todos os aspectos do filme. Em um traço bem particular, ela desenha cenários que abraçam a fantasia que a história traz, mas sem se prender na necessidade de um falso realismo. Por mais que o filme se passe em 1650, muito tempo depois da Idade Média, vemos essa falta de perspectiva característica nas artes plásticas do período muito bem marcada aqui.
É como se essa falta de fidelidade espacial fosse responsável por traçar qual a relação das personagens com o ambiente e como ele as define. As casas da cidade vistas de longe são todas iguais e amontoadas, as ruas são apertadas, por sua vez, o castelo, que já é grande por fora, é visto bem maior por dentro, com um salão real estonteante. Dessa forma, evidencia o penhasco social existente entre o povo e o governante que tenta galgar sua lealdade.
Esse é um filme bem corajoso ao traçar seu posicionamento e seguir firme nele, como se a dicotomia que traz a tona realmente se justificasse. Em suma, podemos dizer que é um drama bem politizado e, em tempos atuais, vale dizer que isso é um baita elogio.
Ele não tem medo de protagonizar duas mulheres e explicitar sua dor com o aprisionamento, tratar de pautas ambientais de uma forma bem explícita e até mesmo ousa em criticar o poderio inglês que, dentre muitos outros, sempre oprimiu os outros povos das Ilhas Britânicas com mão de ferro e praticamente extinguiu a cultura celta com sua sede por domínios e seu imperialismo fervoroso.
Wolfwalkers é um filme acalentador que com um apelo visual lindo guia o espectador em uma fábula incrivelmente moderna. É um filme que não se limita nem puramente à mensagem, história ou recursos, mas incorpora os três para extrair o que há de melhor de sua narrativa. É inspirador e, se não fosse o existencialismo abstrato de Soul, seria um dos fortes concorrentes para levar a estatueta de Melhor Animação para casa.