“A câmera é uma arma”, já dizia o diretor, roteirista e ator Zózimo Bulbul; para nossa sorte, “Infiltrado na Klan” (Blackkklansman – 2018), o mais recente filme de Spike Lee, através de uma análise inequívoca que apresenta o racismo e o antissemitismo através de uma dicotomia entre o perigoso e o absurdo, resultando em uma resposta pungente contra o fenômeno global de ascensão de governos intitulados de extrema-direita, com ideais abertamente fascistas, é a arte como artilharia pesada de contra-narrativa e resistência civil.
Com o roteiro livremente baseado no livro que o autor Ron Stallworth publicou em 2014, narra detalhadamente sua história: a de um jovem policial negro de 25 anos, o primeiro a ser contratado no Colorado, quando, em 1978, viu um anúncio nos classificados de um jornal. O texto sucinto ofertava um telefone e endereço para envio de cartas, no qual seria possível obter maiores informações sobre a Ku Klux Klan. A trama se desenrola a partir do momento que o Stallworth entra em contato com a organização e consegue se infiltrar com um plano brilhante: todos os contatos eram feitos por ele, enquanto os encontros pessoais eram realizados por um agente caucasiano, no livro chamado “Chuck”; já no filme, o personagem se torna um “judeu-americano não praticante” chamado Flip Zimmerman. Tudo foi tão bem arquitetado que Ron chegou a conhecer a figura escusa de David Duke, grande líder da organização racista e antissemita.
Nos primeiros minutos do filme já temos a confirmação de que não há espaços pra eufemismos nos comentários sociais da obra, pois, numa sequência visualmente poderosa, contempla-se uma figura caricata como um fantoche, Dr. Kennebrew Beauregard (Alec Baldwin), com imagens documentais sendo projetadas em sua pele alva perfeitamente mesclada ao fundo branco, balbuciando de forma ridícula um informe, cuja mensagem é terrivelmente séria e prepara a audiência para o que vem a seguir. Um escárnio explícito a memória e obra do diretor D.W. Griffith (“O Nascimento de uma Nação” – 1915) e uma piada interna com o ator que interpreta o presidente Donald Trump no SNL, programa humorístico da NBC. Também é lembrete cruel e necessário de que a humanidade só é designada àqueles que detêm a narrativa da História e que figuras autoritárias são construídas como lideranças carismáticas pela banalização da análise textual de seus discursos.
O David Duke da ficção é uma criação sublime do ator Topher Grace, que consegue incorporar com uma ironia ímpar a real ameaça do verdadeiro Duke, o “cidadão de bem” calculista, que percebe que queimar cruzes é muito menos eficaz do que usar um terno e poder midiático para usar discursos de ódio como capital político, obtendo assim o verdadeiro poder estrutural. Ao arquitetar a dominação de todas as esferas institucionais, que o permitem fazer a perpetuação de todos os privilégios e ideologias extremistas, este ganha o respaldo de um povo que sempre teve talento para subverter a própria história, suprimindo o direito a memória com silenciamento e “fatos alternativos”.
Uma das características mais formidáveis de Spike Lee em “Infiltrado na Klan” é, precisamente, como ele acrescenta elementos ficcionais para construir críticas pontuais a uma história que aconteceu nos anos 70 e como, 40 anos depois, se mantém mais atual do que nunca. É inclusive uma de suas obras mais acessíveis em termos de referências socioculturais e históricas. Lee vira o espelho para um estudo atento e profundo da branquitude, causando um desconforto proposital ao forçar o público branco a se racializar e perceber como objeto de estudo, ao invés da já corriqueira imersão na “cultura negra” esperada por esses espectadores em obras como: “Faça a Coisa Certa” (1989), “Febre da Selva” (1991), “Malcolm X” (1992), “Clockers – Irmãos de Sangue” (1995), “A Hora do Show” (2000) e, mais recentemente, “Chi-Raq” (2015).
Obviamente que o interesse romântico, existente somente no filme, entre o protagonista e Patrice Dumas (Laura Harrier), a líder no movimento negro estudantil da Universidade do Colorado, possibilita que muitas referências clássicas do movimento cinematográfico de blaxploitation sejam utilizadas, o que compõe perfeitamente a estética e personalidade dos personagens e, inclusive, faz uma ponte perfeita com o primeiro trabalho como detetive disfarçado de Ron: participar de um discurso do ativista e ex-membro dos Panteras Negras, Kwame Ture (Corey Hawkins), para conseguir informações sobre a mobilização do movimento negro na cidade. O desenrolar dessas tramas traz questionamentos complexos, em parte baseados na teoria da “dupla identidade” do sociólogo a ativista W.E.B. Du Bois, que centraliza muitas das decisões e sentimentos de Ron, mas ainda sim, tal trama permanece em segundo plano.
Vive-se em um período histórico no qual muitos se consideram acordados e aliados à luta antirracista e antissemita, embora dificilmente se reconheça que o estereótipo do “cidadão de bem” abarca muito mais personalidades do que maniqueísmo social imposto costuma reconhecer. O detetive Flip Zimmerman, do prodigioso Adam Driver, por exemplo, é o homem branco que detém a passabilidade necessária para uma vida tranquila na qual assumir sua ancestralidade é uma escolha e, justamente por isso, é obrigado a assimilar e confrontar sua própria branquitude para se fazer valer como um aliado real a seu parceiro Ron na operação que executam. O sucesso da dupla e de toda equipe de policiais brancos que os apoiam acontece quando eles entendem que apreciar a cultura negra não significa valorizar as vidas negras. Ser racialmente consciente é a única forma de não ser conivente com as iniquidades que o racismo estabelece e usar sua vontade política e privilégios para mudar tais estruturas de forma efetiva.
O público branco obviamente não se verá nos personagens de Felix e Connie Kendrickson (dos excelentes Jasper Pääkkönen e Ashlie Atkinson), casal que encarna todas as características estereotipadas dos eleitores de Trump: caucasianos pobres, ignorantes, cristãos e ultranacionalistas que ainda sonham com ideais de uma grandeza que jamais possuíram, abraçando a violência como linguagem base para se expressarem, auto afirmarem e estabelecerem dominância.
Com a promessa de ascensão econômica e pureza racial, deliberadamente ignora-se inclusive a opressão de gênero. Fato que Lee deixa muito explícito ao colocar a lente sobre Connie, que representa os 52% de mulheres brancas que elegeram o então candidato, notório por suas condutas e declarações misóginas. Historicamente, mulheres brancas são tão violentas e nocivas quanto seus pares, elaborando e participando sem pudor nenhum de atos brutais, conscientemente usando a vulnerabilidade de suas peles e papeis sociais para oprimirem outros grupos sociais que consideram inferiores e a história estadunidense jamais permite que essa faceta seja esquecida, seja mantendo casos como o de Emmett Till vivos ou com mulheres não-brancas segurando cartazes que relembram a responsabilidade de mulheres brancas na eleição do presidente, durante a Marcha das Mulheres em Washington, no ano de 2017.
É delicioso poder perceber o tom de humor literalmente negro nas piadas do filme. Lee está muito confortável de rebater de maneira cáustica cada tentativa de justificativas racistas e antissemitas, já inseridas no senso comum da sociedade. Nessa crescente, temos o cerne da obra em uma sequência de cenas onde o ativista Jerome Turner (Harry Belafonte) relata para os estudantes ativistas do movimento negro da Universidade do Colorado sobre ter testemunhado o caso real de linchamento de um jovem negro chamado Jesse Washington, no ano de 1916, crime este influenciado pelo lançamento do filme “O Nascimento de uma Nação” (1915). A reunião acontece paralelamente enquanto Flip é iniciado por Duke na KKK e obrigado a comemorar com uma exibição turbulenta do mesmo filme, na qual seus companheiros vibram numa catarse coletiva de prazer e puro ódio. Ao repetidamente alternar as cenas entre os supremacistas brancos aplaudindo seus “heróis” e os ativistas negros absorvendo a horrenda história de um semelhante sendo brutalmente assassinado e tendo sua dignidade negada até mesmo depois de morto, fica mais do que explícito que as noções de “poder” pregadas são fundamentalmente diferentes e impossíveis de serem ideologicamente relativizadas ou postas numa falsa simetria cínica: Os ativistas negros pregam a equidade, “Todo o poder para todas as pessoas”, enquanto os integrantes da KKK pregam extermínio.
Quando o arco de Stallworth termina com a conclusão da investigação e do desenrolar de seu relacionamento com Patrice, Flip e demais policiais, Spike Lee salta 40 anos no tempo.
A trama pousa diretamente em 2017 com uma montagem de notícias e imagens de celular sobre a manifestação ultranacionalista intitulada “Unite the Right” (“Una a Direita”), na cidade de Charlottesville, Virgínia. Centenas de homens e mulheres brancos marcham carregando tochas, enquanto fazem saudações nazistas e gritam palavras de ordem contra negros, imigrantes, homossexuais e judeus. Em meio à barbárie disfarçada de liberdade de expressão; uma mulher branca, assistente jurídica e ativista de direitos civis, que contra manifestava no local, chamada Heather Heyer, foi brutalmente assassinada por James Fields, um dos supremacistas brancos presentes, num atropelamento doloso que deixou mais 19 feridos. Lee também inclui trechos da infame conferência de imprensa do presidente Trump depois do ato, quando o presidente disse que havia culpa em “ambos os lados” pela violência em Charlottesville e afirmou, ainda, que “pessoas muito boas” marchavam com os neonazistas. A cereja do bolo é um David Duke mais velho e definitivamente mais poderoso, usando seus recursos midiáticos para convencer seu público de que aquilo era um direito divino e totalmente americano e que, na realidade, eles quem estavam em perigo.
É exatamente aí que Spike Lee faz da sua câmera a arma mais poderosa: Usando a famosa edição paralela de Griffith para uma magnífica vingança artística utilizando a mesma técnica que permitiu a KKK a expor seu fanatismo e fortalecer sua ilusão de grandeza, ele retoma uma quantidade significativa de poder cinematográfico para todas as pessoas e desmistifica várias figuras abjetas. Por fim, generosamente mostra como é essencial conhecer a história, de modo que a sociedade abrace sua ancestralidade, retomando o poder, unificando suas vozes para reescrever suas próprias narrativas, criando assim possibilidades de novos futuros.
“Infiltrado na Klan” é, pois, uma aula de análise de discurso, montagem e estratégia de resistência audiovisual, que deve ser assistida por todas as pessoas.