De tempos em tempos, surgem no circuito cinematográfico algumas produções que causam impacto ao retratar de modo cristalino o comportamento da sociedade contemporânea diante de algum dilema, de um tabu – variando isso de acordo com a cultura em que a trama em si está localizada. Se nos anos 80 tivemos o alemão Eu, Christiane F. ou nos anos 2000 fomos marcados pelo brasileiro Cidade de Deus, neste final de década a produção filipina Kalel, 15 coloca o dedo na ferida da sociedade ao usar como pano de fundo o modo como esta trata as pessoas portadoras de HIV.
O início causa estranhamento que, ao se descobrir que possui o vírus, o jovem Kalel Fernandez (Elijah Canlas, de Gameboys) mantenha uma feição neutra, irritantemente quieta, ao mesmo tempo que sua mãe Edith (Jaclyn Jose) destila insultos severos ao adolescente, estando nitidamente mais preocupada com o que os vizinhos diriam se descobrissem do que com a saúde de seu filho.
Entretanto, a trama logo em seguida mostra os motivos do silêncio: Kalel não tem um lar, uma família. Vivendo literalmente em uma favela, o jovem precisa conviver com a vida promíscua da mãe, com os constantes problemas causados pela irmã e seu namorado drogado. Além disso, ele é fruto de uma relação da sua mãe com o padre local (Eddie Garcia). Uma vez que este deve viver em celibato, a relação paterna praticamente inexiste, onde seu contato é limitado a confissões na igreja ou em visitas em casos de emergência.

Neste cenário, não há um porto seguro para Kalel se sentir confortável o bastante para falar de si. É um jovem que vive entre segredos, conversas soltas que despistam sobre quem ele verdadeiramente é, o que ele sente e o que pensa. Fica implícito em alguns momentos, embora o garoto não seja visto em nenhum tipo de contato sexual com homens, de sua bissexualidade – mesmo tendo uma namorada, nitidamente apaixonada por ele e até por isso surge como estopim de toda ação dramática, o rapaz produz selfies que ressaltam seu corpo e seu rosto jovial, fazendo dele alvo de xavecos e propostas sexuais por parte de homens nas redes sociais. Entre segredos e omissões, Kalel aprendeu forçado a sobreviver no silêncio e, com os acontecimentos que viriam à tona, sozinho.
Neste seu recente projeto, Jun Robles Lana (Alérgica a WiFi) optou em trazer para a discussão não as causas de como Kalel contraiu o vírus, mas sim os efeitos sociais que este causa na vida do garoto. A verdade é que não há inocentes aqui. O que há é uma descida ao caos, ao desapego humano. Utilizando pouca trilha sonora e uma belíssima fotografia em preto e branco (cortesia de Carlo Carlas Mendoza, fiel escudeiro do cineasta), Lana apresenta um mundo acinzentado, sem perspectiva de esperança ou final feliz, o que bizarramente casa com a atualidade de muitos.
Entretanto, o grande achado do longa é sem dúvida Elijah Canlas. Não é à toa que ele (e o longa em si) vem conquistando diversos prêmios em festivais de cinema: o jovem ator carrega a trama nas costas, trazendo sutileza às expressões necessárias para um personagem com tamanha complexidade. Com maestria e poucos gestos, Canlas se transforma do garoto comum na escola ao objeto de desejo sexual nas mídias sociais em instantes, sem a necessidade de rompantes emocionais. Não há tal necessidade: basta encarar os olhos de Kalel e ali tudo lhe será revelado.

Rodado em 2019, Kalel, 15 não é o tipo de drama social que irá lhe chocar graficamente, mas as questões levantadas por ele – o estigma em torno do HIV, o descuido dos jovens filipinos com o sexo e as consequências de crescer em uma família com moralidade social (e cristã) dúbia – fará no mínimo o espectador refletir sobre o que acabou de ver e sentir.
Os créditos finais mostram que tais problemas seguem no país asiático e que o assunto ainda precisa ser debatido. Assim, o que se vê na tela não é mera ficção: é um retrato de uma juventude negligenciada e mal orientada, que grita silenciosamente por socorro… Assim como a jovem Christiane e o carioca Zé Pequeno.
Kalel, 15 está disponível na Netflix.
OBS: o filme não está disponível oficialmente no Brasil. É necessário trocar o idioma do seu perfil na plataforma para inglês para ele aparecer no catálogo. Só há legendas em inglês.