Em tempo de lançamento de O Médico e o Monstro e Outros Experimentos pela Darkside Books, que, como sempre, faz um excelente trabalho editorial, uma pergunta fica evidente: como uma obra escrita há mais de um século ainda consegue ser tão presente nas manifestações artísticas atuais?
Escrito em 1886 por Robert Louis Stevenson, o conto vai compor o arsenal de histórias da Darkside que visa discutir as facetas da mente humana. A maioria dos leitores conhece o enredo: um cientista que faz uma experiência para expandir o potencial humano, mas ela dá errado e ele se transforma em uma fera.
O tema foi o principal combustível por trás do sucesso desta história, que se tornou muito popular já na época de seu lançamento, vendendo mais de 40 mil cópias. Para os padrões atuais, este número não significa muita coisa, contudo, no final do século XIX poucas pessoas sabiam ler. Em menos de um ano, porém, o conto virou peça teatral, expandindo os horizontes que ele podia alcançar.
Como resistir à ideia de um homem normal, um cientista, explorador das miríades naturais, se tornar uma fera esquisita e perder toda a sua humanidade? Impossível. Por mais que não queiramos admitir, nossa dita humanidade é composta não apenas por nossas faculdades intelectuais como também de instintos, impulsos orgânicos, estímulos, sentidos… ou seja, temos uma parte totalmente selvagem. E esta metade – que, na verdade, se prova bem maior que 50% – nos lembra o tempo inteiro que somos muito mais animal que racional. Uma realidade inegável que fazemos questão de esquecer. Por quê?
É exatamente essa discussão que o conto sobre Dr. Jekyll e Hyde evoca, por isso é tão inescapável. O debate, na época vitoriana, sobrevivia da dualidade proposta pelos dogmas religiosos sobre o bem e o mal como também sobre a ética rígida entre decoroso e o indecoroso. Todavia, como a obra permaneceu viva e atravessou os séculos, este duplo alicerce foi sofisticado para o permitido e o proibido como o que é socialmente aceito e o que não é.
O espectador então, diante desta obra, percebia que experimentava o reflexo do que era; que todas as pessoas, inclusive ela própria, possuíam desejos reprimidos e que se eles fossem liberados revelariam sua imagem animalesca que sempre foi condenável e afastada da concepção do que é humano.
O debate ainda continua na atualidade sustentado pelas grandes mídias. O cinema foi uma grande ferramenta de maximização desta obra.
Primeiramente em versões preto e branca, mudas, e depois coloridas e com falas, a história sobre a dualidade do ser humano propiciou inúmeras manifestações na literatura, na televisão e, é claro, no cinema. Você, inclusive, já conhece algumas delas.
Nas HQs, o Médico e o Monstro pode ser vista na Liga Extraordinária (posteriormente adaptada para o cinema), de Alan Moore, no X-men, com o personagem Fera, e nos Vingadores, com o famoso verdão Hulk. Nestes três exemplos, a brincadeira entre o homem e o animal está bem visível e remota diretamente ao conto de Stevenson. O cinema também traça sua homenagem em Van Helsing, que logo no início do filme confronta o clássico cientista que se transforma em monstro.
Todavia a investigação sobre a mente humana é um trabalho infinito, portanto mais obras exploraram os múltiplos caminhos que o conto poderia ir. Logo no Duas-Caras, o vilão icônico do Batman, a influência serviu para revelar como o homem consegue mudar de face devido ao meio que habita e como isso, às vezes, vira uma marca permanente, como no caso do vilão que tem todo um lado corroído por ácido.
No Clube da Luta, Chuck Palahniuk oferece aos leitores um personagem com dupla personalidade, uma sofisticada forma de aplicar Dr. Jekyll e Hyde nos dias contemporâneos, além de remontar a discussão sobre a dualidade da mente humana. Este tema é amplificado em Fragmentado, de M. Night Shyamalan, em que o público é confrontado com um personagem, não com duas, mas com 23 personalidades distintas.
Apesar de provocar frisson e ser considerada um distúrbio de múltipla personalidade, o filme busca apenas explicitar de forma clara e visível que o ser humano não oscila apenas entre o bem e o mal, mas assume diversas faces enquanto experimenta o mundo que chama de viver. É não é essa a verdade? A cada momento assumimos uma postura diferente para lidar com determinadas circunstâncias. Suavizamos este acontecimento com diversas explicações – de básicas a filosóficas – mas entendemos, com conhecimento de causa, que somos realmente fragmentados.