Definitivamente de fazer o estômago revirar em alguns momentos, O Poço, dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia e protagonizado por Iván Massagué (Goreng), traz uma alegoria amarga da estrutura social desigual que existe no mundo, um tema já trazido no último ano por Parasita e Bacurau.
Logo nos primeiros minutos de filme é interessante analisar uma fala dita por um dos coadjuvantes, Trimagasique é vivido por Zorion Eguileor. “Não chame os de baixo. Porque estão abaixo. Os de cima não respondem. Porque estão acima, óbvio”. Intrigantemente, a obra entrega aqui ao espectador o seu propósito, por uma escolha, política ou não, de facilitar a leitura da alegoria que procederá o primeiro ato de Goreng, o protagonista, na companhia de Trimagasi.
O personagem vivido por Zorion encarnará muito bem a figura social da pessoa que atua em nome da sobrevivência, de maneira, como o próprio personagem diz, civilizada. No entanto, ainda que seus atos apareçam em nome da sobrevivência, esta é a individual, Trimagasi colabora para que o sistema não seja quebrado.
O que se torna claro na cena em que a mesa desce para o nível abaixo do que eles estavam (48) e ele mija nos restos da comida enquanto os de baixo a consomem. O personagem representa o individualismo dentro de uma estrutura social desigual.
Outro arco intrigante é o da Miharu (Alexandra Masangkay) em busca do filho, que mais tarde descobrimos que é uma filha. Inicialmente, a ideia que a personagem passa é de uma mulher maluca que se tornou uma assassina, porém, logo que entendemos que a criança, filha dela, é a esperança fica claro que a Miharu traz à tona a história da busca extrema e violenta por essa esperança.
Enquanto, a próxima companhia de Goreng (no andar 33), Imoguiri, interpretada por Antonia San Juan,representa o completo oposto, a voz pacífica e correta. A personagem faz a parte dela e tenta resolver as coisas com os outros somente no diálogo, já que, ela acredita que se todos comessem o necessário, a comida chegaria aos níveis mais baixos – o que Imoguiri chama de solidariedade espontânea. Porém, a tática dela é ineficaz, provando que muitas pessoas ainda não estão abertas à conversa sobre coletividade.
Mais uma vez, Goreng desperta em um nível diferente, o nível 6, quem está com ele ali é Baharat(Emilio Buale) que, após perder a chance de subir com a corda, o objeto que levou para o Poço, até o nível 0, escolhe acompanhar Goreng na jornada de tentar racionar a comida para que chegue à todos os níveis do Poço e depois subir até o 0 para pensar em conversar com a Administração.
É importante analisar como o personagem vivido por Iván Massagué pensa neste plano e a escolha de objeto dele para levar para o Poço. O filme mostra um tipo de jornada do herói quixotesca – não é de se admirar a escolha do livro que o protagonista queria ler – quando Goreng começa a ouvir vozes dos personagens já mortos o chamando de messias. A figura de um messias é perigosa, principalmente, porque carrega em si o fato de que uma pessoa, e somente aquela pessoa, com iniciativa pode salvar a tudo e todos. E isso não é real.
No decorrer do plano deles – Goreng e Baharat –, um outro personagem intrigante, Sr. Brambang (Eric Goode), os encontra em um dos níveis e os diz que eles precisam de uma “mensagem” para que sejam ouvidos pela Administração e então, Baharat e Goreng escolhem um dos pratos da mesa para que voltasse ao nível 0 intacto, a Panna Cotta. No final do plano deles e no último nível do Poço, o 333, os dois encontram a menina, filha de Miharu, e decidem dar o único prato que restava, a Panna Cotta, para ela, que estava com fome. Logo, ela se torna a mensagem e simboliza a esperança na história.
Como o filme termina é que gera um incômodo. Ao mesmo tempo que traz a mensagem de que o fechamento da história está na nossa realidade e em como faremos a nossa “Administração” lidar com essa desigualdade que vivemos – um final aberto muito bom do ponto de vista de roteiro –, também é um pouco ingênuo.
A esperança, como sentimento muitas vezes é ingênua, justamente por isso a escolha de uma criança para representar isso, mas mais ingênuo é Goreng ao acreditar puramente no fato de que a Administração trará uma resposta positiva para acabar com a estrutura desigual do sistema. Algo que traz uma sensação doce e amarga quando os créditos aparecem.