A chegada do novo coronavírus provocou uma mudança no convívio entre os seres humanos. A humanidade é representada pelo ser social, o ser comunicável, o ser da interação, mas neste momento tudo o que o ser humano é entre em cheque. As pessoas não podem mais fazer aquilo que lhe é intrinsecamente natural: interagir. E como se resolve essa frustração nesses tempos de isolamento social? Com a outra naturalidade humana: comunicação.
A transição do final do século XX para o início do XXI modernizou a internet e criou novos meios de comunicação e interatividade entre as pessoas sem que elas estejam de fato próximas. E o motivo deles terem sido criados também foi pensando para momentos como os de agora; momentos em que as pessoas não têm como interagir. Então a ferramenta ganha muito mais visibilidade e importância nesta situação em que todos precisam se isolar um dos outros.
Mas como dosar seu uso? Como incorporar as mídias que favorece a comunicação neste contexto pandêmico do dia a dia? E no cotidiano de uma criança, como isso funciona? A resposta é a mesma para todas as perguntas: encontrando na lúdico o combustível para a sanidade.
Pressão introspectiva devido ao isolamento
Nesse momento em que as pessoas estão afastadas uma das outras, é muito mais fácil se voltar para si mesmo. E isso gera tanto resultados positivos como negativos. Olhar para o “eu” interior é uma das formas de autoconhecimento e, no ritmo desenfreado do cotidiano, as pessoas quase não param para refletir sobre si mesma, seus desejos, seus medos, suas angústias e planos. Portanto esta situação de quarentena acaba sendo propícia para meditação e reorganização de toda existência interna de uma pessoa.
Entretanto, há indivíduos que estão enfrentando doenças psicológicas e o isolamento só vem a prejudicar seu estado emocional. Segundo a UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), numa pesquisa feita com 1.460 pessoas em 23 estados, os casos de depressão subiram 90% em menos de um mês durante a quarentena. Além disso houve aumento também de ansiedade e estresse neste mesmo período.
Tecnologia driblando o isolamento
A tecnologia se tornou o grande agente facilitador da comunicação humana neste período, porém é importante que as pessoas saibam dosar seu uso mesmo com a falta de dinamismo social. Ela pode produzir consequências positivas até mesmo para momentos íntimos, como é o caso de assistir a um filme no streaming ou ler um livro em algum dispositivo e-reader. Também pode conectar as pessoas aos eventos que elas costumavam frequentar, como é o caso das lives de show, videoconferências e outros.
Um exemplo disso partiu da Orquestra Sinfônica do Paraná. Ela gravou uma versão do “Trenzinho do Caipira” de Villa-Lobos, no qual cada músico estava em sua casa, mesmo com o maestro Stefan Geiger, na Alemanha.
Contudo é importante reservar momentos longe destas ferramentas tecnológicas, até mesmo para experiências extrassensoriais, que sim, são possíveis de acontecer mesmo no isolamento. As pessoas se esquecem, mas ler um livro em papel, jogar jogos de tabuleiros e brincar com as crianças são atividades que estimulam muitas áreas do cérebro. E é esta região que deve ser fortalecida neste momento para que a pessoa retorne mais preparada para o cotidiano social quando ele retornar.
Fantasia enriquece a mente humana com experiências válidas
O foco do isolamento social é a mente, pois é ela que processa todas sensações e emoções que o indivíduo sente. Portanto é necessário uma constante vigilância e exercício dela para que não adoeça e, longe disso, fique ainda mais forte. A fantasia contribui para isso, e não é apenas para as crianças.
O universo interno de uma pessoa é construído tanto com experiências físicas e reais quanto com experiências imagináveis e fictícias. Um grande exemplo disso é o enriquecimento de ideias e conhecimento moral para pautar as ações do dia a dia. Por isso, os adultos e as crianças encontram na fantasia um ambiente seguro para explorar suas experiências intrapessoais, além de aprender mais sobre o ser humano. Afinal boas histórias carregam muitos pensamentos sobre a interação e o convívio. Ou seja, as pessoas utilizam o universo fantástico para se preparar para o mundo real.
É o que aponta a educadora Carla Jarlicht, que é Mestre em Educação e consultora educacional.
“Geralmente as boas narrativas trazem conteúdos humanos complexos de uma maneira delicada, poética, inusitada. Algumas vezes de forma divertida, outras de forma absurda, triste, assustadora e até repugnante. O caso é que precisamos dessas histórias porque são elas que provocam questionamentos acerca dos nossos conflitos ao articularmos a narrativa com nossas próprias emoções”, explica Carla.
Segundo a educadora, é possível encarar a fantasia como jornada psicológica, quântica ou espiritual, mas ela sempre vai estar voltada para o ser humano real, para que ele se fortaleça emocionalmente através de experiências impossíveis e, muitas vezes, mais profundas que as suas próprias experiências físicas.
“É isso que nos ajuda a lidar melhor com nossos próprios sentimentos e a encontrar saídas nos labirintos da vida. Portanto, pode-se dizer que é encarando o monstro ou a bruxa das narrativas que ficamos mais prontos para encarar os monstros e bruxas que estão aqui fora. Nesse sentido posso dizer que a leitura modula o estresse, apazigua e fortalece” salienta a professora Carla.
Portanto, a experiência da fantasia vai além de uma pura invenção. Ela também se prova uma oportunidade da solidificar e armazenar um conceito ou experiência abstrata; o momento em que a pessoa eterniza parte de si mesmo na idealização.
Jung, fundador da psicologia analítica, já dizia que o pedaço mais profundo da mente humana funciona como um bebê vivendo num ambiente completamente distorcido. É o claro símbolo da ingenuidade de uma pessoa ante o desconhecido, situação que a fantasia (um ambiente seguro) provoca.
E como se não bastasse tudo isso, a fantasia afasta a percepção de solidão. Ela confere atenção e ressalta o fato de que as pessoas sempre formam o coletivismo. Dentro deste universo, elas se relacionam com vários seres, indivíduos e mundos. Essa conversa constitui uma interação com algo para além dos limites físicos.
O lúdico como arma para uma criança driblar a quarentena
Toda essa correlação da fantasia com experiências humanas explicadas aqui prepara o adulto também para o trato com as crianças. A professora Carla Jarlicht defende que o isolamento social pode ser utilizado sabiamente pelos pais para aproximá-los de seus filhos, criando uma construção de memória afetiva entre eles. Ela aponta que ler e brincar é um caminho para isso.
“O brincar e a leitura são atividades extremamente convidativas e essenciais. Tanto uma quanto a outra permitem essa aproximação, esse aconchego, esse encontro de mundos e de afinidades. O brincar é condição de ser criança, é assim que ela lida e organiza seus conteúdos afetivos e vai entendendo melhor o mundo que a cerca. A leitura é, em boa medida, um brincar com a imaginação, possibilitando ainda mais uma ampliação de mundo pelo sem-fim de narrativas que traz” enfatiza Carla.
E o livro é um excelente veículo para conduzir uma criança para dentro da fantasia, do lúdico. Lá, assim como os adultos, elas vão brincar de enfrentar monstros e dragões que vão lhes preparando emocionalmente, de forma divertida e prazerosa, para driblar os monstros da vida real.
Além disso, o livro físico ainda estimula o desenvolvimento cognitivo e sensorial de uma criança – e não apenas dela. Ele envolve a experimentação através do tato, tocar as páginas; do olfato, sentir o cheirinho de livro novo; e principalmente da visão, pois é através dela que absorvem a linguagem e as ilustrações.
“Elas precisam dessa experiência, pois conhecem o mundo assim, sentindo, comendo pelas beiradas (ou se lambuzando mesmo!), através do toque, do cheiro, e a cada virada de página vão adentrando na história a partir daquele suporte. Hoje existem também livros-objeto que proporcionam ainda outro tipo de experiência, surpreendendo o leitor com seus projetos gráficos, ampliando a leitura” explica a educadora.
E o poder cognitivo acaba sendo o maior advento dessa atividade. Pois a experiência de decodificar os símbolos gráficos da linguagem e traduzi-los mentalmente em conhecimento, memória válida, exercita e amplia a potencialidade intelectual tanto da criança quanto do adulto.