
Bom, esse será um texto longo e complicado, então já peço desculpas, mas não dá pra tratar sobre saúde mental de forma simples. Ao final, vou linkar todo o material que eu li antes de escrever esse texto para quem tiver curiosidade/interesse saber quais foram as minhas fontes para colocar esses pensamentos aqui.
Falando um pouco sobre mim e porque esse tema é importante para mim: apesar de fazer matérias para o Cabana eu não sou jornalista, eu sou Psicólogo Analista Comportamental, e gosto muito de jogos, em particular de League of Legends, acompanhando o cenário competitivo desde o final de 2015. Dentro da Psicologia, durante muito tempo, uma das coisas que mais me encantou foram processos de Ensino e Aprendizagem, e como nós podemos utilizar jogos para ensinar.
Falando sobre o cenário, para mim sempre foi óbvio a falta de profissionais de saúde nas organizações envolvidas, até porque os jogadores falam disso em suas lives, streams e entrevistas. Uma vez o outra eu ouvia falar sobre alguma ter a presença de nutricionistas, fisioterapeutas e talvez psicólogos, mas sempre dava a impressão de ser algo que “às vezes tem”, não uma política da organização de ter aqueles profissionais continuamente envolvidos. Pensando nessas questões, vamos lá.
Como nós estamos?
Recentemente nós tivemos anúncios de Kami, Riyev e Goku sobre seus percursos. Os dois primeiros anunciaram suas aposentadorias do cenário competitivo, e o último que irá jogar 2021 pelo Academy da equipe do Flamengo e-Sports. Os 3 já foram campeões do CBLoL e considerados grandes jogadores em suas funções, ou seja, é difícil de pensar que algum deles poderia sentir-se mal em relação aos resultados que conseguiu ao longo da carreira. No entanto, todos os anúncios se destacavam entre as razões para a mudança o fato dos jogadores relatarem que estava/estiveram com a saúde mental prejudicada. Buscando saber mais a respeito dos casos é possível deduzir que dinâmicas adotadas pelas organizações contribuíram para seu adoecimento. Vou fazer um breve resumo do que interpretei sobre esses casos, e já adianto que o objetivo aqui não é fazer uma crítica a qualidade dos profissionais presentes, caso estejam presentes, mas sim ao modelo de atenção à saúde que está sendo utilizado nas organizações (afinal, todos temos nossos erros e nossos acertos).
Goku
Quando anunciou sua mudança para o Academy, o jogador explicou em seu texto postado no twitter tudo que passou no fim de 2019 e ao longo de 2020, sugiro que quem não tenha lido, pare para ler.
Pelo meu entendimento do texto, a organização do Flamengo aparentemente não tinha um profissional a disposição para poder acompanhar a situação pela qual Goku estava passando, visto que ele disse ter procurado ajuda apenas após o fim do split, ou então pelo menos o foco dentro da organização não era a saúde mental do atleta. Afinal, se você tem um jogador que passou por um luto recente, e então temos a situação da pandemia, que acho que todos já sabem que afetou muita gente de forma negativa, o que se espera, se há um psicólogo na organização, é que ele faça um monitoramento, mesmo que a distância, de como seus jogadores estão e seja capaz de perceber que seus jogadores não estão bem.
Sobre a resolução encontrada pela organização fica ainda mais difícil de opinar. Num primeiro momento, a ideia de o passar para o Academy parece positiva, pois não o deixa distante do jogo (algo que inevitavelmente faria seu nível de habilidade cair) mas não lhe coloca a pressão do campeonato principal, permitindo ele ter seu tempo para se recuperar. Porém, segundo apura matéria do maisesports, possivelmente o jogador teria sido forçado pela organização a tomar essa decisão, sendo que seu verdadeiro desejo seria realmente realizar a pausa e cuidar de si, e não uma mudança para o Academy. Caso isso seja verdade, não passa de outra demonstração de descaso com a saúde do atleta. Como o jogador já está buscando ajuda, o máximo que podemos fazer agora é desejar melhoras a ele.
Kami
Os relatos de Kami ajudam a pensar na questão que comentei antes sobre qual modelo de atenção à saúde que está sendo feito dentro das organizações. A PaiN é conhecida por ter profissionais da psicologia há muito tempo, se não me engano, desde 2015, e até onde eu já vi, é um pessoal que faz um trabalho bem interessante. Porém é bizarro ver o Kami passando pelo que ele relata. Vou chamar atenção para a metade a partir dos 6:00 do vídeo abaixo (da uma olhada também caso não tenha visto).
No vídeo, Kami comenta que não sabia que poderia desistir, que não via como se encontrar, que não sabia que não podia ter certeza do que queria, que não via a possibilidade de parar por causa da quebra de expectativa que isso iria causar. Vejam bem, isso de fato é algo que ocorre com muitas pessoas em momentos de decisões, e não é fácil de atravessar. É estranho ver que não houve um profissional que percebesse isso ou que oferecesse oportunidade para se perguntar se ele realmente queria continuar, ajudando-o a entender essas questões.
Com essas histórias dá pra levantar algumas perguntas cujas respostas podem depender dos objetivos e valores estabelecidos pela organização: O importante é o rendimento do jogador dentro do Rift, ou a sua saúde de fato? Não podemos negar que as vezes o jogo vai ser o grande problema para o saúde do atleta, e talvez a pausa ou até a saída dele seja necessária para preservar sua saúde mental. E também é muito estranho ver como a organização lidou com isso no geral, pois em seu vídeo Kami dá a entender que pelo menos uma pessoa sabia o motivo de seu afastamento, e que ele começou a “viver uma mentira” onde ele precisava fingir para o público que estava treinando, que estava vivendo a rotina de atleta, e quando vemos que ele continuou participando dos Merchans do time como jogador, a impressão que passa é que a organização não teve a preocupação ou sutiliza de tentar diminuir isso, e sim que apenas pensou em continuar a utilizar a sua imagem, alimentando a mentira.
Riyev
O caso do Riyev pra mim é o mais gritante do absurdo (e que me faz ter certeza que a equipe da KaBuM não tinha um psicólogo). Eu realmente recomendo que assistam todo o fio que ele postou. Em seus vídeos, Riyev fala muito sobre confiança, mas não vou me atentar muito a isso porque isso é algo que qualquer um, seja psicólogo ou não, se atentaria, o que eu realmente gostaria de trazer são as questões envolvendo Tabe, ex treinador da equipe.
Visões do cenário e minha história 2/4. pic.twitter.com/wZaIvVhdDG
— FLA Riyev (@riyevlol) December 14, 2020
“O cara falava: Você é muito ruim, eu vou jogar no seu lugar, porque você é pago para jogar?” São algumas das frases que Riyev comenta que ouvia do treinador. O jogador Dynquedo também já comentou sobre a passagem do Tabe em uma entrevista ao Shot da Caju (dos 20:00 aos 23:05), e ele traz o mesmo relato de comportamento. Durante a entrevista, tanto Caju como Brtt comentam que queriam o Tabe como técnico. Acreditem, não queriam não. Uma pessoa te xingar não vai fazer absolutamente nada para você melhorar. Não é alguém te chamar de lixo que vai te mostrar o que você está errando. Colocando de uma forma simples, essa ideia de que alguém te xingar/agredir te dá motivação pra se provar, ou te prepara melhor para a vida é o Anti Vacina da Psicologia. O máximo que vai fazer é acabar com sua motivação e te fazer se sentir pior, igual ocorreu com Riyev. Isso não quer dizer que devemos “passar a mão na cabeça” de jogadas erradas, mas você pode simplesmente mostrar ao jogador o que ele está errando e o que precisa fazer para melhorar. E é inadmissível uma organização ser conivente com um técnico que está xingando e destratando seus jogadores (lembrando que isso não é coisa apenas do passado, visto que recentemente cvMax sofreu punição na Coréia do Sul por comportamentos iguais), e no caso de Tabe ele só foi sair da equipe depois de resultados negativos. A sua saída em nenhum momento esteve relacionada com o fato de ele realizar agressões verbais contra seus jogadores, ou seja, se ele destruísse a auto estima dos jogadores, mas vencesse, estaria tudo bem. O importante eram os resultados imediatos, não a saúde a longo prazo dos jogadores. Por isso é importante o pedido que Riyev faz em seu vídeo: “Gente, prestem muita atenção em quem vocês vão contratar pra Staff, pra quem vai cuidar de player, pra quem vai falar com player, tomem muito cuidado. Porque se vocês chamarem um cara errado, cês podem acabar destruindo um time, e até afetando muito mais pessoas, que foi o meu caso.”
Então basta ter Psicólogos?
A resposta simples para essa pergunta é: Não. De nada adianta um profissional estar presente se sua prática não tem como objetivo o bem estar do jogador. E como falei no início do texto, o ponto não é questionar a qualidade dos profissionais, e sim qual psicologia é feita. quando buscamos na literatura da área sobre o enfoque dos trabalhos realizados por psicólogos do esporte (onde praticamente só temos produções sobre a psicologia no esporte comum, e não sobre o eletrônico, mas apesar de não ser o ideal, na prática ambos não são tão distantes) percebe-se que a psicologia é especialmente requisitada para traçar perfis psicológicos, ensinar técnicas paliativas para aumentar a concentração e reduzir a ansiedade, e estimular o jogador a “deixar os problemas para fora do campo”, ou seja, no geral, seu objetivo é otimizar e/ou aumentar o rendimento da equipe, e em conjunto a isso, mas nem sempre, é feito um trabalho individual de cuidado da saúde mental com cada jogador, e muitas vezes esse tem como foco questões de caráter profissional, retornando ao objetivo de “deixar problemas para fora do campo”. Veja bem, considerando que o esporte profissional (seja ele físico ou seja ele eletrônico) é altamente competitivo e exige alto rendimento, não há problema em buscar aumento no nível de performance dos jogadores, porém isso se torna sim um problema quando o aumento de rendimento é mais importante que o cuidado da saúde mental do atleta. Psicólogos são profissionais da Área da Saúde, é incompatível que o objetivo principal da nossa atuação não seja a saúde, sendo que muitas vezes é isso que ocorre, a saúde se torna secundária enquanto o alto rendimento se torna o prioritário.
Quando vemos notícias, depoimentos de jogadores e entrevistas, percebemos que o que é dito quase sempre gira em torno de aprimorar o rendimento, muitas vezes centrado na relação do jogador com o jogo, e não do jogador com si mesmo (afinal, jogadores são pessoas que tem problemas de cunho pessoal fora do mundo do e-Sport), parece que nunca existe a possibilidade de um jogador, ou equipe, se afastar do jogo e/ou não pensar nele para cuidar de si, a motivação para melhorar a saúde precisa ser melhorar no jogo, e não simplesmente a saúde por ela mesma. Mas no fim, se o objetivo do profissional de psicologia dentro do planejamento de uma organização não necessariamente está no cuidado da saúde, obviamente em algum momento ocorrerão problemas relacionados a falta de atenção com a mesma, como nos casos que vimos anteriormente.
A partir disso, a grande questão é: As organizações estão dispostas a ter um psicólogo se “intrometendo” nas relações que ocorrem dentro da mesmas para focar na saúde dos jogadores, ou os querem apenas para garantir aumento de rendimento? Se a forma como o time está sendo gerido for um problema para as relações internas dentro da organização, vai ser ok um psicólogo questionar e propor mudanças na mesma? Se em um determinado momento, o jogo for o que estiver fazendo mal a um jogador, ou a rotina estabelecida para o funcionamento da organização estiver prejudicando a saúde mental de um time, vão poder ocorrer mudanças ou afastamentos visando o bem estar de saúde, ou isso só vai poder ocorrer em caso de melhora de resultados para a equipe?
Lembrando que um jogador tem maiores chances de jogar melhor quando tem suporte, acesso à informação e relações saudáveis com o mundo e consigo em continuo desenvolvimento. Quando um time está tendo resultados ruins, todos se questionam se seu trabalho está sendo eficaz, jogadores, treinadores, Psicólogos, Nutricionistas, Fisiologistas, e todos os outros profissionais e funcionários que atuam dentro da organização, de forma que todos querem a vitória, porém é preciso analisar os custos para atingir a mesma.
E comentando também que aqui basicamente só me atentei a questão dos jogadores ativos das equipes, mas profissionais da saúde envolvidos também deveriam atuar em situações de parcial ou completa exclusão dos jogadores de treinos, qualquer que seja o motivo de não estarem sendo aproveitados pelos seus times, como já ocorreu no passado com Brtt e Rakin na PaiN Gaming, e recentemente com a Mayumi e Yatsu na INTZ, visto que essa exclusão não apenas afeta seus desempenhos como profissionais mas também diversos outros âmbitos da vida do indivíduo.
E a Riot, pode fazer algo?
Esse é um ponto delicado porque não sabemos como funciona o contrato e parceria das equipes agora no novo sistema de franquias. No início de Setembro, tivemos a oportunidade de participar da coletiva de imprensa sobre o CBLOL 2021, e aí tenho que dizer com tristeza que na época não pensei em questionar se a Riot tinha exigências em relação a infraestrutura das equipes pensando na saúde dos atletas (foi comentado sobre infraestrutura voltada a formação de novos jogadores e de aumento da marca), mas seria bastante interessante que isso fosse um critério da própria Riot para aceitar a participação dos times, principalmente levando em consideração que as organizações precisam desprender um mínimo de R$ 4 milhões apenas para a entrada na franquia, ou seja, estamos falando de times que possuem condições financeiras de investir em infraestrutura e profissionais da saúde que estejam presentes no dia a dia das organizações, e não apenas para consultas esporádicas.
Recentemente, já tivemos anúncios de algumas equipes em relação a presença de Psicólogos e outros profissionais da saúde, como a equipe da LOUD, com Arthur Santos, e da Vorax, com a Nati Zakalski (que tem um trabalho bem fantástico na área), mas seria legal ver mais equipes anunciando esses profissionais e que ocorra o investimento em infraestrutura interna para que eles possam estar presentes diariamente nas gaming offices, e acompanhar as equipes em todas as competições. No fim, para quem está na torcida, cabe pressionar as organizações para que comecem a se preocupar com a saúde dos jogadores e de seus funcionários no geral, e para que deem condições adequadas paras os profissionais da saúde atuarem buscando promover, acima de tudo, a saúde.
Referências:
Notícias:
Psicólogo João Cozac alega descaso do Cruzeiro em negociação: https://maisesports.com.br/lol-psicologo-joao-cozac-descaso-cruzeiro/
Psicologia dentro dos esporte eletrônicos: https://www.gazetaesportiva.com/todas-as-noticias/de-cabeca-no-jogo-psicologia-dentro-dos-esportes-eletronicos/
Na mente do jogador: A psicologia dentro do e-Sport: https://maisesports.com.br/na-mente-do-jogador-a-psicologia-dentro-do-e-sport/
e-Sports: Rec’n’Play debate psicologia e universidades: https://www.folhape.com.br/esportes/esports/e-sports-recnplay-debate-psicologia-e-universidades/87070/
CBLoL 2020: como chegada de psicóloga ajudou a mudar a situação da Prodigy: https://globoesporte.globo.com/esports/lol/noticia/cblol-2020-como-chegada-de-psicologa-ajudou-a-mudar-a-situacao-da-prodigy.ghtml
‘Worlds’: Psicólogos esportivos da paiN Gaming comentam desafios da INTZ: http://www.espn.com.br/noticia/635275_worlds-psicologos-esportivos-da-pain-gaming-comentam-desafios-da-intz
Psicólogos de time brasileiro comentam força mental para vencer em League of Legends: https://noticias.r7.com/hora-7/psicologos-de-time-brasileiro-comentam-forca-mental-para-vencer-em-league-of-legends-18052019
The role of an esports psychologist: https://www.pinnacle.com/en/esports-hub/betting-articles/educational/role-of-an-esports-psychology/
The role of Psycology in eSports: https://medium.com/emotionalapps/the-role-of-psychology-in-esports-201df1eaf383
Produções Acadêmicas:
Artigo de Kátia Rubro: Ética e compromisso social na psicologia do esporte. :http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932007000200011&lng=en&tlng=en
Artigo de Kátia Rubro: Da psicologia do esporte que temos à psicologia do esporte que queremos: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-91452007000100007
Artigo de Adriana Amaral: Em busca de uma boa forma de fazer psicologia do esporte: contribuições da gestalt-terapia: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672017000100006
Dissertação de Mestrado de Adalberto da Silva: E-Sports: efeitos de auto-fala no incremento de habilidades no jogo League of Legends: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/21371/2/Alberto%20da%20Silva%20Santos.pdf
Dissertação de Mestrado de Hugo Soares: A Psicologia e o Psicólogo do Esporte: Uma formação necessária: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/20801/1/2016_HugoSoaresPinho.pdf