Os casos policiais muitas veze revelam cenas inacreditáveis do mundo urbano. Algumas, de tão recorrentes, nem nos chocam mais. Contudo, há sempre um calafrio que percorre nossas espinhas quando lembramos que as pessoas são capazes de tudo que um romance policial narra. Chicote é uma história sobre um serial killer formado pela ética religiosa, pela qual desenvolve um fanatismo.
“A vida não pode ser apenas a luta pela sobrevivência”
Chicote é o primeiro livro da saga com o mesmo nome que traz os policiais Grego e Romano para desvendar os crimes mais bizarros de suas carreiras. Ele foi escrito por Nuno Rabelo e publicado pela editora Letramento. O livro pode ser encontrado no formato impresso e digital nos marketplaces, incluindo a Amazon.
A história começa com o envolvimento de um advogado com uma mulher que ele conhece na rua. Ele está com problemas no casamento e vê nessa mulher uma fuga do mesmo. Eles vão para um apartamento, onde acabam transando. No dia seguinte, a mulher é encontrada morta.
Os policiais Grego e Romano assumem o caso e, ao analisar a cena do crime, encontram um cartão de visitas do advogado Felipe. E então nós encontramos nosso primeiro suspeito.
Mas não se engane, leitor. Há muito mais sobre o caso. Há muito mais sobre Felipe.
Ao longo da narrativa, vamos conhecendo outros personagens que, aparentemente, não se relacionam com o caso Chicote, mas no final essas histórias se interligam de uma maneira bastante verossímil. E aqui já consigo destacar um dos pontos positivos do livro. Todos os fatos narrados são coerentes e se interligam, criando uma atmosfera plausível de acontecer na realidade.
Chicote traz, durante a trama, várias reflexões recorrentes à sociedade. Muitas delas perpassam a individualidade de cada cidadão. Há a presença de uma corrente católica durante os crimes que marca bem a necessidade de falarmos sobre os ensinamentos cristãos. O livro os utiliza para desenhar as cenas de assassinato, buscando evidenciar a hipocrisia entre o que é pregado e o que é praticado.
A religião no livro marca a ética e o moralismo presente na sociedade. Também determina como o grau de fanatismo religioso pode gerar situações violentas dentro da mesma, que é o oposto do que é pretendido pela religião. Apesar disso, a história quer tratar da sociedade como um todo. Por que, após mais de 2 mil anos, ainda atacamos nossos semelhantes?
“O ser humano é o único animal racional que conhecemos, mas é o animal que mais elimina o seu próprio semelhante”
Os personagens Grego e Romano possuem esse nome não à toa, pois a Grécia e Roma formam o princípio das normas sociais como as conhecemos hoje. A ideia de sociedade foi desenvolvida na Grécia Antiga e absorvida pela Roma, que difundiu em seu império através dos ensinamentos cristãos, após conversão para o cristianismo.
A partir dessa construção, a história tenta investigar de onde nasce os conflitos entre os humanos em sociedade. O livro responde trazendo cenas de pessoas com desejos reprimidos, projetando no sexo a necessidade de extravasá-los. Muitos deles são selvagens e primitivos, portanto acabam assumindo um caráter agressivo. E em certo ponto isso acaba extrapolando o limite da lei. É desse contraste que nasce o assassino em série. E é assim que ele escolhe suas vítimas.
“Todos têm suas fantasias, suas perversões, seus segredos, seus pecados”
A trama consegue trazer essas discussões ao mesmo tempo que é bem fechadinha e não deixa nenhuma pergunta sem resposta. Ao final do livro, é possível perceber que todos os personagens participam da mesma rede de intrigas que alcançam seios familiares, política, relações exteriores, sociedade e, é claro, o sexo.
“Uma sociedade vazia, sem cultura, sem assunto, faz com que as pessoas falem umas das outras, sendo este o único assunto. E quem julga, o faz com seus próprios valores, que não necessariamente são os corretos”
O título Chicote, embora faça alusão ao caso investigado pelos policiais, também compreende bem toda a premissa da história, pois acaba açoitando o leitor para acordá-lo para a realidade onde as pessoas se destroem em decorrência de seus interesses individuais, mesmo quando assumem posições sociais. É bem apropriado.
Chicote é um livro muito bem escrito, com algumas tiradas bem feitas e reflexões extremamente bem desenvolvidas. E também não deixa de instigar o leitor a descobrir os meandros do caso. No entanto, há algumas coisas que me desconectaram da leitura. Por exemplo, houve momentos em que um dos policiais, o Romano, discorria sobre assuntos filosóficos acerca das atividades humanas. Apesar disso fazer parte do caráter do personagem, em alguns momentos, esses diálogos acabaram “pausando” a trama.
Outro detalhe um tanto incômodo são as “piadas” entre Grego e Romano. Grego parecia bem natural e coerente quando as fazia, mas Romano não as entendia. Até aí tudo bem. Só que o livro perde muito tempo evidenciando a “lerdeza” de Romano que isso acaba entediando o leitor.
Essas situações são chamadas de ruídos na narrativa. Esses ruídos criam portas de fuga para o leitor sair da história, algo que não pode acontecer. É claro que o autor precisava explorar os pensamentos filosóficos de Romano, afinal ele tem essa personalidade, mas isso acaba ficando exagerado.
Mesmo assim, Romano e Grego conseguem ser a dupla de personagens mais interessantes da história. Eles possuem sangue como se existissem na vida real. A forma como a amizade e o companheirismo entre eles é inabalável, acaba consolidando, e contradizendo, toda a afirmação que o livro quer discutir. E isso é perfeito! Pois mostra que, apesar de estarmos em sociedade cheia de deficiências provocadas por seus participantes, ainda há pessoas que se mantêm íntegras.
Chicote é uma história envolvente, instigante e que vai lançar muitas perguntas ao leitor. Porém, não é uma leitura rápida. Aconselho lê-la quando estiver bem relaxado. É ideal para aqueles momentos que queremos desfrutar da boa companhia de um livro bom, que nos prende mas que também nos faz pensar.
É preciso destacar que o estilo de escrita de Nuno Rabelo é uma atração à parte. O autor escreve muito bem, com gosto, esculpindo o texto com palavras para que o mesmo possua a imagem de uma obra de arte. Há um nítido requinte literário em sua linguagem.