Acho que nós, leitores, compartilhamos de uma mesma sensação: aquela ao entrar em uma livraria ou biblioteca, pegar um livro aleatoriamente sem nenhum critério e dar uma chance a ele. Gostando ou não da história, parece que aquele livro apareceu propositalmente para você, para que o odiasse ou o amasse. E é exatamente dessa sensação que a obra infanto-juvenil trata.
“Há duas maneiras de um livro chegar até você: a normal e a secreta. A normal é quando você o compra ou alguém lhe dá ou empresta. Já a secreta é muito mais importante: nesse caso, é o livro que escolhe o seu leitor.“ — pg. 37 — O Livro Selvagem.
O Livro Selvagem é uma obra do autor Juan Villoro. Nascido na Cidade do México, é professor universitário e atualmente considerado um dos intelectuais latino-americanos mais ativos. A história acompanha as férias de Juan, um pré-adolescente confuso e desgostoso com o contexto familiar: o divórcio dos pais, questionamentos internos e todo um repertório problemático muito comum durante a fase de transição entre a infância e a adolescência.
Devido ao divórcio, o pai de Juan estava mudando de casa, e a mãe, aflita e angustiada, precisava de um tempo para se adaptar à mudança. Decidiu deixar a filha mais nova com uma colega e enviar Juan à casa de seu tio-avô, Tito, um homem excêntrico e solitário cuja companhia se restringe a corredores de livros antigos, gatos e à cozinheira. Obviamente, Juan não gostou da ideia de deixar de explorar o bairro com seu colega Pablo para passar um tempo ao lado do seu tio “maluco”. No entanto, o que ele não imaginava era que sua temporada na casa passaria longe de ser tediosa.
Ao chegar à casa do Tio e estranhar sua personalidade mas acostumar-se, Juan decidiu dar uma chance à estadia e começou a explorar o imenso casarão, adentrando corredores de livros e contemplando suas peculiaridades. Perdendo-se em meio às palavras, Juan descobriu uma ligação singular com os livros. Sabendo disso, Tito disse ao garoto que ele possuía um dom de leitor Princeps, e cabia a ele encontrar um livro entre todos os que jaziam na biblioteca, um livro arredio e misterioso: O Livro Selvagem.
Sua aventura começa a modificar seu cotidiano, fazendo-o mergulhar nessa história junto a amiga recém-conhecida, Catalina, uma menina corajosa que trabalha em uma farmácia em frente ao casarão. Ela se interessou pela aventura de Juan e decidiu se juntar a ele.
A proposta da história é, justamente, apresentar um plano aparentemente simples: uma aventura de um pré-adolescente em crise que se descobre no decorrer da narrativa, constantemente adotada em literaturas infanto-juvenis. Mesmo sendo comum encontrar essa estrutura narrativa, a história me cativou de maneira orgânica, pois os personagens Juan e Tito aparentam representar as facetas do autor, que nomeou o personagem principal de sua história com o seu nome. A narrativa se desenrola de forma fluida, à medida que Juan se aventura em suas leituras e as compartilha com Catalina, ou quando dialoga com seu tio, que não tem habilidades sociais, mas está aberto a compreender o que Juan tem a dividir.
Além disso, a forma como Tito deposita em Juan a confiança para encontrar O Livro Selvagem contribui para o amadurecimento do personagem. A relação de Juan com os livros é tão íntima que sincroniza-se com os sentimentos desenvolvidos ao longo de sua trajetória, e uma fala de Tito para o sobrinho representa exatamente isso:
” Nada tem tanto caráter quanto um livro. Uma biblioteca é como um ‘almário’: uma coleção de almas, sobrinho. Os livros se movem como as almas no cemitério, aproximando-se ou fugindo de alguém.”— pg. 35 — O Livro Selvagem.
Isso se alinha muito com as fases das nossas vidas, em que não temos controle sobre os eventos ao nosso redor; eles simplesmente acontecem. Não é sobre o que escolhemos, mas sobre o que nos é colocado e a forma como lidamos com os imprevistos da vida.