O ato de beber sangue é uma projeção constante quando falamos sobre vampiros. Apesar de ser clichê, ele condensa em si mesmo toda uma reflexão sobre a vida humana da forma mais íntima possível. E nada é mais íntimo que o sangue. Ele flui dentro de nós e nos mantém vivos. Entrevista com o Vampiro vem investigar o que tem neste elemento que os fascina tanto.
“O mal é um ponto de vista”
Entrevista com o Vampiro é um livro escrito pela autora estadunidense Anne Rice. Seu romance de estreia foi lançando pela primeira vez em 1976. Ele chegou ao Brasil traduzido por ninguém menos que Clarice Lispector e foi publicado pela editora Rocco, que relançou a obra em uma edição exclusiva de capa dura. O livro é tão fascinante que ganhou uma adaptação cinematográfica homônima em 1996 e arrebatou os corações do público e dos críticos. A adaptação conseguiu trazer para telona a atmosfera épica do livro de modo brilhante.
Sinopse
O livro, como o nome sugere, começa com Louis sendo entrevistado por um jornalista. Esse rapaz o encontra na rua e, após estudá-lo, compreende que aquilo é uma criatura distinta, apesar de parecer humano. Quando começa a entrevista, ele percebe que se trata de um vampiro e ouve sua história. No início, ele não dá muita credibilidade ao vampiro, mas depois entende que é tudo verdade e até deseja se tornar um.
Por que falar de vampiros?
Entrevista com o Vampiro foi lançado há muito tempo, bem na época que a literatura gótica retornava às prateleiras com tudo. Mas esse não é o motivo por trás do sucesso de Anne Rice. Todo o crédito deve-se à autora por compreender a necessidade de se falar sobre essa criatura através de uma ótica humana.
Anne Rice não apenas conta uma história sobre vampiros, ela disseca sua mente afim de entender quem eles são, como pensam, o que os motiva, se sentem prazer, se se apaixonam e como isso acontece. Através das palavras de Lispector, conseguimos observar que o tempo todo há uma constante narrativa sobre a imortalidade.
Os vampiros conseguem cruzar séculos de vida e ainda ostentar a mesma aparência. Eles são, ao mesmo tempo, o sonho da vida humana e seu maior desespero. Pois um ser que vive séculos, milênios, acumula inúmeras experiências e passa por incontáveis transformações. Imagine abrigar em seu ser a dor e o prazer de mais de um milhão de vidas? Como se sentiria essa pessoa? Já é difícil conviver com o sofrimento de uma vida só.
“O inferno existe, não importa para onde formos, estarei nele”
A autora nos propõe uma resposta brilhante. Os vampiros de Anne Rice descobrem ao longo da vida que precisam conviver consigo mesmos para permanecerem vivos. É escrito no livro que muitas pessoas não possuem o necessário para ser um vampiro, porque em um determinado momento elas se cansariam de viver. E isso fica bem claro quando Louis e Cláudia empreendem uma viagem para encontrar mais vampiros e se deparam com poucos.
O vampiro então é a imagem de um ser humano caso ele cruzasse séculos de vida. Uma criatura de mente bastante afiada, porém com um intrínseco vazio em seu ser. É por isso que eles são soturnos.
Os vampiros são uma metáfora do ser humano.
Vampiros x humanos
Para traçar um paralelo coerente é preciso listar as características humanas. De modo geral, a raça humana vive por hábito e não compreende a própria função no mundo. Desconhece sua origem e vive a esmo procurando respostas para o sentido da vida. As mesmas questões assolam os vampiros.
Eles buscam respostas para a própria existência bem como o sentido de atravessar milênios de sobrevida.
A sede animal que os vampiros possuem por sangue também surge do homem. A História revelou que o ser humano já se entreteve bastante com a barbárie. Na época dos gladiadores isso era literal, mas a necessidade de ver os outros se enfrentando em combate ocorre até hoje. Um exemplo do anseio do homem por sangue é o jornalismo. Todo dia consumimos informações chocantes que ocorrem a terceiros. A desgraça vende jornal porque o ser humano compra. Fazemos isso meio que por instinto. Está no nosso sangue.
“A morte está em toda parte”
Do mesmo jeito um vampiro precisa beber sangue para sobreviver. Ele precisa dessa substância porque é nela que mora a vida. Porém, seu interesse nela acaba sendo um prazer. Anne Rice se vale do erotismo para tornar mais evidente o êxtase que um vampiro sente ao beber sangue. Esse ébrio justifica metaforicamente o desejo do homem pela barbárie. Por isso eles são violentos.
Apesar disso, o sangue não traz apenas alimento ao vampiro. Tal como o humano, eles também precisam sustentar sua mente, nutrindo-a com arte, conhecimento, entretenimento e experiências. Os humanos são animais diferentes porque pensam, e justamente por isso precisam nutrir o corpo e a alma. Os vampiros, ao sugarem o sangue do homem, também estão se nutrindo com toda a vivência que essa pessoa teve.
Em Entrevista com o Vampiro é possível identificar como eles escolhem quem vão atacar nos momentos que precisam beber. Nós fazemos a mesma coisa quando vamos comer. Escolhemos qual prato vamos desfrutar não apenas por seus nutrientes, mas pelo prazer que a comida pode proporcionar. Com os vampiros é a mesma coisa. Eles seletam os humanos que vão beber porque tudo o que faz deles uma pessoa vai fazer parte do vampiro. Assim como a gente, eles são o que comem.
O vampiro então se tornar um predador da raça humana, ocupando assim o pico da cadeia alimentar.
Já a característica sombria dessas criaturas, que só podem caminhar à noite, remete à ideia que os seres humanos escondem na escuridão tudo aquilo que não querem mostrar socialmente. Tudo aquilo que eles mesmos não desejam ver.
Personagens marcantes
Dentro da história somos apresentados a alguns personagens que, de tão bem construídos, possuem mais que carne e osso, possuem sangue, alma. E cada um deles cumpre um significado universal da raça humana.
Louis — este vampiro reúne em si o repúdio pela violência que ele mesmo causa. Ele representa todos os humanos que lamentam a destruição causada por sua raça à natureza. Ao compreender esse desserviço, percebe que mais ninguém deve se tornar um vampiro.
Lestat — ao contrário de Louis, ele representa a liberdade para agir conforme sua natureza. Ele é símbolo do perfeito predador, do que o homem seria se aceitasse quem é: um animal que pensa. Lestat aproveita cada momento, gozando das delícias de ser um vampiro livre de moral, de adestramento ou regras. E quando alguma coisa tenciona limitá-lo, ele se rebela. Lestat é o anseio da alma humana, que deseja mais que tudo viver o que é sem ser repreendido, até porque tem poder para enfrentar qualquer um em seu caminho.
“A vida sem mim seria ainda mais insuportável”
Armand — aparecendo na parte final do livro, Armand é a metáfora clara do tédio que é ser imortal. Após séculos vivendo, ele já provou diversos prazeres e já viveu tantas experiências que as coisas tendem a ser repetitivas. Nada mais tem sabor. A vida fica monótona e sem significado. Armand representa o vazio da imortalidade. Ele é o retrato perfeito da frustração que o ser humano teria se fosse imortal.
Cláudia — essa criatura possui uma construção particular. Ela é a resposta para a pergunta: como seria envelhecer em um corpo jovem? Os vampiros amadurecem apenas mentalmente. Tal como o humano, eles crescem em maturidade e aprendizado e passam por mais fases que uma pessoa passaria. Quando eles atingem a velhice, no entanto, seus corpos não acompanha essa transformação. Cláudia deixa essa discussão mais aparente porque virou vampira quando criança. Ela cresce e se torna uma mulher, mas seu corpo continua de menininha. Isso a frustra porque ela jamais será madura. Nunca vai saber o que é ter o corpo de uma mulher. Esta mesma frustração acompanha todos os vampiros, porque eles sempre estarão em desalinho entre corpo e mente. Esse desequilíbrio mina o propósito da vida. Eles são eternos para buscar o sentido da vida, porém não são vivos porque não podem morrer.
A história de Cláudia é tão singular que recebeu uma versão em quadrinhos pela própria editora. A ilustração e a profundidade que o roteiro provoca são uma obra de arte.
Nova edição
Entrevista com o Vampiro agora possui uma belíssima capa dura com o vermelho e o preto lembrando que esta literatura detém traços góticos. Mas a magia sombria dos vampiros termina ao virar a página, detendo-se unicamente às palavras.
A diagramação é bem feita para tornar a leitura bastante confortável, contudo não possui nenhum elemento visual que expanda a experiência ou a torne mais imersiva. Fora o fitilho e uns pequenos gracejos nas divisórias que partem o livro em dois, o miolo é básico, semelhante a qualquer volume.
A despeito disso, todas as palavras foram cuidadosamente tolhidas por Clarice Lispector para trazer ao leitor a experiência que Anne Rice quis provocar ao escrever o livro. E só esse trabalho já vale o investimento e a leitura.
À guisa de comparação, Entrevista com o Vampiro tem o mesmo requinte literário que Frankestein ou o Prometeu Moderno de Mary Shelley.