Imagine um mundo em que os pensamentos dos homens fossem espalhados por todos os lados… Só poderia ser um caos, não é mesmo? É justamente esta discussão que Mundo em Caos vai propor. Escrito por Patrick Ness e publicado no Reino Unido em 2008, o romance é o novo lançamento da Intrínseca no Brasil. A narrativa ilustra perfeitamente como seria o mundo dominado pela voz do homem, o que, na verdade, acontece desde o surgimento do patriarcado.
O livro narra a história de algumas colônias de seres humanos que chegam a um planeta chamado de Novo Mundo. O motivo deles terem deixado a Terra é explicado em um conto extra. Neste lugar recém-descoberto, um germe mata todas as mulheres e metade da população masculina, além de permitir que os pensamentos dos homens sejam escutados por todos os habitantes. Tudo leva a crer que quem liberou esses germes foram os Spackles – os nativos – na grande guerra entre eles e os humanos.
Todd, o personagem principal, está a um mês de se tornar um homem e, como ele é o último garoto da cidade, há muita expectativa para isso acontecer. Esta cidade foi a última que sobrou. Nela, os meninos se tornam homens aos 13 anos (que na verdade é aos 14 porque o ano para eles é contado com 13 meses). Tudo começa a desandar quando Todd escuta um silêncio nas matas. Em um mundo dominado pelo Ruído – como é chamado o ensurdecedor mundo de palavras – o silêncio se destaca. Se todos os homens são barulhentos, o silêncio só podia significar uma mulher. A única.
Mundo em Caos apresenta logo de início uma urgente discussão social. O mundo governado pela voz do homem é um caos, pois eles só pensam em guerra e destruição. Enquanto a mulher for um silêncio, não haverá evolução real. O Ruído então representa a sociedade que nos acerca, uma sociedade criada por homens e para homens.
Este mundo masculino é apresentado de maneira muito agressiva e autoritária, incorporando elementos militares e excluindo elementos educacionais. O conhecimento é a arma mais poderosa que existe, por isso que, não por acaso, o prefeito mandou incinerar todos os livros da cidade. A maioria da população é ignorante e semianalfabeta.
O prefeito assume o papel de ditador, sua vontade é lei. E ele quer dominar o planeta inteiro. Para isso acontecer, é claro, ele precisa dominar cada um individualmente, e isso só pode ser feito se o povo não tiver instrução para questioná-lo. A religião é utilizada, no livro, como um instrumento de dominação, representada pelo padre Aaron, um lunático que serve aos propósitos do prefeito.
“Uma mente inteligente é amiga do diabo”
A primeira ação de um sistema ditatorial é eliminar a individualidade. Se você é o coletivo, seus interesses pessoais não são relevantes. Todd explicita a dificuldade de se viver em um mundo assim quando explica o mantra que todos os homens devem fazer para preservar suas identidades, senão ela é perdida.
“Você fecha os olhos e tenta ser o mais claro e calmo que der e fala para você mesmo quem você é, porque é isso que a gente perde no meio de tanto Ruído”
Até aqui é possível identificar como o autor está discutindo o mundo em que vivemos, onde nossa liberdade de expressão e direito a individualidade o tempo todo são ameaçadas pelo domínio de homens que só sabem pensar em riqueza, guerra e poder. Ele associa essa perda de identidade à necessidade incessante que o sistema capitalista nos impõe de sermos máquinas. E olha quem Patrick Ness responsabiliza por esse caos? Os homens.
“Já a cidade sabe tudo sobre você e ainda quer saber mais, quer torturar você com o que ela sabe até não sobrar nada”
O Ruído pode ser interpretado de várias maneiras. Além de significar a voz do homem que impera o mundo, ele também representa o mundo digital das mídias sociais. Nelas ninguém se escuta e é quase impossível manter a identidade no caótico ambiente poluído pelo excesso de informação. O livro dá um pequeno indicativo disso quando explicita que o Ruído é um mundo falso, que não representa a verdade, mas sim o que as pessoas desejam que seja verdade. Não é uma perfeita definição do cenário virtual?
“O Ruído não é verdade. O Ruído é o que os homens querem que seja verdade”
Além da notável luta feminista, Mundo em Caos também aborda, de forma sútil – mas não tão suave assim – a mesma dialética de Avatar: a descoberta, exploração e colonização de um Novo Mundo. Não é por acaso que este novo planeta é chamado assim pelos colonos, porque foi este o título atribuído às Américas quando elas foram “descobertas”.
O leitor consegue perceber essa discussão quando descobre que os Spackles, na verdade, não entraram em guerra nenhuma contra os humanos. Estes que chegaram destruindo e matando todos os nativos que encontravam pela frente com a intenção de se apossar de suas terras. Não foi exatamente a mesma coisa que aconteceu aos índios em todo o continente americano? Os Spackles, inclusive, são descritos como selvagens, exatamente a mesma leitura que os colonos europeus fizeram dos índios.
Esta conduta, predominantemente masculina, de guerrear combina perfeitamente com o tema do livro que está discutindo justamente o caótico mundo projetado e governado pelo homem. Inclusive há uma citação que define bem o pensamento do autor.
“O Ruído é o homem sem filtro, e, sem filtro, o homem é só caos em movimento”
Mesmo com este conteúdo bastante atual, a narrativa, da metade até boa parte do final, se desenvolve devagar; entretanto a maneira como Patrick escreve nos faz aceitar com bons olhos esta lentidão. Ele não chega a ser poético, mas é direto, conciso e, por vezes, engraçado.
Mundo em Caos não é apenas uma leitura prazerosa, mas principalmente um convite ao debate mais urgente de nossa sociedade: não dá mais para aceitar o poder do mundo centralizado na mão do homem. É por causa dessa concentração de poder que o mundo é um caos.