Em algum momento na vida, alguns artistas já devem ter reservado um tempo para pensar que a arte poderia ser uma coisa viva, uma pessoa ou talvez uma entidade fantasmagórica que embala indivíduos mais sensíveis… Pensar nessas coisas parece produto de uma mente febril, mas Os Gigantes da Montanha vai revelar que é tudo verdade. A arte, meus caros, é viva.
“E é preciso que acreditem em você para que acredite em si mesmo?”
Os Gigantes da Montanha é uma adaptação de uma peça homônima escrita pelo dramaturgo italiano Luigi Pirandello, que morreu antes de finalizar sua obra. Esta história ganhou cores impressas pela editora Nemo em abril como uma forma de imortalizar um trabalho que, por si só, carrega a vida eterna em sua essência. Embora a Nemo tenha conjurado magia ao colocar arte em papel, o projeto teve participação de outras empresas de diferentes setores como o Grupo Fiat, Faculdade Melies, Fundação Torino Escola Internacional e, é claro, o Grupo Galpão.
A peça foi encenada pelo Grupo Galpão, uma das companhias de teatro mais importantes do cenário brasileiro desde 1982. Com sede em Minas Gerais, o grupo formado por 12 membros está ligado à tradição do teatro popular e de rua, característica que é bem marcada em suas encenações.
Dirigido por Gabriel Villela, Os Gigantes da Montanha conta com a atuação de Inês Peixoto como Condessa Ilse – a atriz também foi responsável por idealizar a roteirizar os quadrinhos – Eduardo Moreira como Mago Cotrone e Arildo Barros como Conde. Abaixo, o elenco completo.
Elenco
- Beto Franco – Duccio Doccia / Anjo Cento e Um
- Luiz Rocha (ator convidado) – Quaquèo
- Regina Souza (atriz convidada) – Diamante / Madalena
- Antonio Edson – Cromo
- Arildo de Barros – Conde
- Eduardo Moreira – Cotrone
- Inês Peixoto – Condessa Ilse
- Júlio Maciel – Spizzi / Soldado
- Lydia Del Picchia – Mara-Mara
- Paulo André – Batalha
- Simone Ordones – Sgriccia
- Teuda Bara / Fernanda Vianna – Sonâmbula
A história se assemelha um pouco às origens do Galpão, revelando a precariedade de um grupo teatral itinerante que é “convidado” a encenar a peça “A Fábula do Filho Trocado”, escrita por um poeta – já morto – para que o grupo fictício encenasse outrora. Eles chegam à vila do Mago Cotrone, o líder dos fantasmas que lá residem, que, ao observarem a aproximação do grupo, se intimidam e tentam afastá-los, sem saber que o Mago os esperava.
Cotrone, encantado pela “Fabula do Filho Trocado”, tenta a todo custo fazer o grupo encenar a peça, mas a Condessa Ilse – que desde o primeiro momento revela ter grande importância – recusa. Eles então são convidados a descansar na vila, onde descobrem que seus sonhos são mais verdadeiros que eles mesmos.
Já na premissa introdutória da HQ, o livro avisa ao leitor que a peça possui muitas interpretações, e talvez por isso seja tão rica, mas fica um tanto evidente o sincretismo entre os atores e os personagens, a arte e a magia, o palco e a imaginação. O enredo é como um grande simulacro fantástico da concepção final de uma obra cênica: o invisível que é visto.
É um pouco difícil de explicar a essência da história porque ela conflui dois sentidos em paralelo. Ao mesmo tempo que ela trata dos problemas encontrados pelos grupos artísticos que não recebem subsídios públicos ou privados para se manterem – ou seja, existem apenas da deferência da plateia –, também desenha a importância de sua existência.
Os artistas sofrem um dilema confuso: tocam a maior riqueza indispensável à alma humana, mas como estes conceitos são algo sem forma, não conseguem materializá-los de maneira palpável para o público, que então ignora a necessidade de existir arte. E quando a necessidade não é vista – neste mundo social e inorgânico que construímos para nós e chamamos de vida – as pessoas simplesmente ignoram ou banalizam. E não é assim que a arte é vista pelo mundo?
Os Gigantes da Montanha busca recuperara a glória da arte, o motivo dela existir; e mais do que isso, visa enobrecer uma potência humana que é jogada de lado justamente porque confere ao indivíduo poder sobre si mesmo. Algo que um sistema social como o nosso jamais permitiria.
Nesta dramaturgia em forma de quadrinhos, o leitor vai se deparar com personagens vivos e mortos, ao mesmo tempo que vai descobrir que os mortos estão mais vivos que os “viventes”. É uma brincadeira dançante com personas que assumem a grandeza de um conceito. Isso é visto na Condessa Ilse, por exemplo, que pode ser interpretada como “A Alma do Artista”. E, na verdade, quando o leitor começa a entender esse paralelo de arte com alma é que ele começa a realmente escutar a história.
“Estar aqui é como estar nas bordas da vida. A um comando as bordas se separam, entra o invisível, propagam-se os fantasmas”
Os personagens – de modo geral, não os desta história em específico – são como fantasmas que assombram o imaginário do poeta – colocados em Os Gigantes da Montanha como o criador principal da arte – e que só conseguem ser materializados, ou seja, se tornar visíveis, ao serem encenados por atores. Tratando desse modo, os artistas seriam como médiuns que, a partir de seus corpos, tornam vivos seres que nunca existiram. O tempo todo durante a narração é dito que eles são donos de tudo e do nada.
O paralelismo da obra e sua profundidade artística conseguem transgredir a forma peça – encenada – através desta HQ. É inacreditável que, a todo momento, o interlocutor consegue “assistir” à peça ao apenas lê-la – tal como Mago Cotrone faz com “A Fábula do Filho Trocado”. O êxtase que a obra atinge termina no paladar do leitor com um gosto sublime ao mesmo tempo que triste. É agridoce, mas ao mesmo tempo, perfeito.
E os gigantes, onde entram na história? Eles aparecem bem no final – que jamais foi escrito, apenas sugerido ao filho de Pirandello – revelando o que são. Se você leu até aqui já pode imaginar que o sentido atribuído a eles também é metafórico. Os gigantes são as grandes organizações frias que destroçam o valor da vida – e da arte – em detrimento do capital.