Uma mulher no escuro é um suspense psicológico lançado em maio pela editora Companhia das Letras e escrito por Raphael Montes. O romance explora as camadas mentais em que se forma o medo e como ele se produz, muitas vezes, de maneira controvertida para manter o objeto temido em evidência.
O brilhante criador de Suicidas foi finalista dos prêmios Benvirá (2010), Machado de Assis (2012) e do Prêmio São Paulo de Literatura (2013). O autor também encabeçou a lista dos mais vendidos de dezembro de 2016 com Jantar Secreto, que foi adaptado para uma peça em 2018 e traduzido para alguns países, incluindo França e Espanha. Seu livro Dias Perfeitos foi um fenômeno que rendeu direitos de tradução para vinte e dois países e críticas nos jornais aclamados The Guardian e Chicago Tribune, além de ter ganho o título de livro do mês na Amazon norte-americana.
O livro conta a história de Victoria, uma mulher que no auge da sua inocência aos 4 anos de idade viveu um episódio aterrorizante. Seus pais e seu irmão foram brutalmente assassinados a facadas, além de terem seus rostos pichados com sprays pretos. Victória também fora atacada, mas por algum motivo o assassino teve piedade e deixou a menina viva, apenas com um ferimento que resultou na perda de sua perna.
O assassino, que ficou conhecido como “O pichador”, se entregou logo após o ocorrido. Seu nome era Santiago, um ex-aluno da escola onde a mãe de Victoria lecionava e onde o pai era diretor. Por ser menor de idade, ele ficou preso somente por um ano e depois que foi liberado nada mais se soube sobre ele.
Vinte anos se passaram após a tragédia e Victória se tornou uma mulher solitária e cheia de bloqueios. Seu trauma fez com que ela desenvolvesse pesadelos frequentes e paranoias, além de manter alguns hábitos infantis – ela também nutre uma grande dificuldade para se relacionar de maneira afetiva. Por esse motivo, seu círculo de amizades é resumido ao seu estranho amigo Arroz, seu terapeuta Max, sua tia Emília, que a criou depois do acontecido, e o enigmático George, com quem Victória se envolve e acaba derrubando suas armaduras internas.
Tudo começa a andar normalmente na vida de Victoria até que um dia ela chega do trabalho e encontra vestígios do seu passado pintados em sua parede. A partir daí, ela mergulha fundo na própria história, qual havia lutado tanto para deixar escondida em sua mente, e acaba se envolvendo em uma perseguição íntima e silenciosa em prol de sua sobrevivência.
“Vamos brincar?”
Em Uma mulher no escuro, Montes nos traz a primeira protagonista mulher. Apesar de ter vivido um trauma grande e ser bastante complexa, Victoria não é nem de longe uma mulher frágil. Raphael soube explorar os problemas e nos deu uma protagonista forte, dona de si, quem sabe exatamente quem é e o que viveu, embora ela prefira ignorar seu passado constantemente. No decorrer da história pode-se notar que Victoria trava uma guerra contra si mesma. Embora chegue perto de se entregar, ela se fortalece, mergulha cada vez mais fundo na própria vida, derruba algumas barreiras internas e bate de frente com seu pavoroso passado.
“Assumir as rédeas não significa ignorar o que veio antes, o que você viveu. Significa ir atrás, entender, enfrentar”
Acostumado a explorar o medo no cotidiano dos seus personagens, o autor aborda uma faceta dele mais primitiva como premissa dessa história, investigando como o medo funciona dentro da mente de uma pessoa, ou seja, seu lugar de criação. Através de Victoria, Raphael nos mostra como ele é produzido pela mente e em que ponto ele se torna terror, a ponto de travar uma pessoa completamente. Afinal, onde é que o medo se forma senão em nossas próprias cabeças?
O medo é apenas um sistema natural de alarme ante o perigo. Somos avisados por nossos sentidos a prestar atenção em tudo que nos acerca quando uma situação se mostra estranha. O medo nos coloca no presente. Ele é de longe algo ruim. Porém, quando a pessoa não entende o que ele é e não consegue direcioná-lo para a ação, ele se torna um bloqueio, podendo desenvolver sequelas psíquicas como traumas. É justamente isso que Victoria ilustra. Raphael Montes nos presenteou com um estudo de caso neste livro.
“Seu coração batia num ritmo ensurdecedor. Dizem que o medo tem cheiro e faz barulho”
Um dos pontos mais interessantes é a escrita envolvente do romance e a maneira como ele se desenrola. Além das reviravoltas típicas de uma história de Montes, o livro é narrado de modo psicologicamente detalhado. A narrativa permite que o leitor entre na cabeça da protagonista de um jeito tão profundo que é necessário fazer pausas durante a leitura para se recompor, principalmente em momentos de aflição. O cuidado em detalhar as ações e as emoções da protagonista faz com que a leitura seja um pouco mais lenta, mas isso não afeta em nada a qualidade da história, que continua sendo digna de Raphael Montes.
Uma mulher no escuro termina deixando um silencioso lembrete: é preciso externar nossos medos para que, à luz do dia, eles não sejam tão pavorosos e nos incite a enfrentá-los.