Cabana Queer é uma categoria dentro do setor de cinema e séries criado por iniciativa destas editorias, tendo como curadoras únicas pessoas LGBTQIA+ do Cabana do Leitor, sem interferencia da direção do site.
Dirigido por Céline Sciamma, uma das vozes femininas e LGBTQIA+ mais potentes do cinema atual, Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019) se passa na França do século XVIII – mais especificamente, por volta dos anos 1770 – e retrata com fidelidade a beleza de um amor entre mulheres — Não é a toa que a obra recebeu o Palma Queer no festival de Cannes de 2020. O carinho que foi usado para retratar o romance queer é nítido em diversas cenas.
A direção teve o cuidado de mostrar a romantização e a erotização lésbica de forma realista e confortável, e não de forma hipersexualizada para chamar a atenção do público masculino heteronormativo, como é comum de se encontrar nos filmes por aí. Mesmo nas cenas sexuais de Retrato de uma Jovem em Chamas, as amantes parecem estar realmente felizes, e não performando. Por isso, o longa também é um ótimo exemplo de como retratar mulheres reais, uma vez que ele é, nas palavras da própria diretora, em tradução livre, “um manifesto sobre a visão masculina sobre as mulheres”.
Retrato de uma Jovem em Chamas não conta com a presença de qualquer influência masculina, seja na história, que é vista diretamente a partir da ótica dramática das protagonistas, seja no elenco (sim, não há nenhum personagem masculino! Com exceção de uma breve aparição), e nem sequer na produção, que é majoritariamente dominada por mulheres – o que é muito importante, já que ainda há uma escassez feminina no meio cinematográfico.
Além de expor uma história única, a narrativa de Retrato de uma Jovem em Chamas também aborda de maneira sútil alguns assuntos muito importantes, trazendo à tona, inclusive, reflexões políticas e filosóficas aos telespectadores mais atentos; como exemplo pode-se citar a falta de liberdade feminina da época, tópico muito visível na Heloïse (Adèle Haenel), que não pode sequer decidir se quer se casar; ou, até mesmo, o aborto, que é tratado numa sequência de uma personagem secundária, Sophie (Luàna Bajrami), uma empregada que cria uma certa amizade com as protagonistas pelo decorrer do longa.
Retrato de uma jovem em chamas possui muitas camadas distintas, o que o torna bem interessante em todos os momentos e, apesar de profundo, é bem dinâmico – há bastante espaço para os pensamentos e emoções do telespectador flutuarem, não é algo árduo de se assistir.
O filme, brillantemente estrelado por Noémie Merlant e Adèle Haenel (que, curiosamente, além de parceira no cinema, também é ex-amante da diretora Céline Sciamma), acompanha a trajetória de duas mulheres: Marianne, uma pintora muito assertiva e talentosa, e Heloïse, uma jovem de espírito independente que carrega o fardo de ter que se casar contra a sua própria vontade; é nesse contexto que o caminho das duas se cruza, quando a mãe de Heloïse precisa contratar alguém para pintar seu retrato disfarçadamente para que ele possa ser levado para seu arranjado futuro marido.
A tensão entre as duas e o segredo que as separa torna a atmosfera da primeira parte do filme Retrato de uma Jovem em Chamas simplesmente hipnotizante; Heloïse pensa que Marianne é apenas algum tipo de acompanhante, então Marianne precisa, ao mesmo tempo que observa-la com muita dedicação, acompanhá-la em caminhadas e conversas, e ainda tomar as respectivas precauções.
Ela enxerga Heloïse com olhos completamente artísticos, quase poéticos; ela é seu instrumento de estudo artístico. É nessa posição de cuidadora e cuidada, de artista e musa que se cria uma sensação de tensão e, até mesmo, de romance comum ao telespectador; e é justamente a partir daí que o relacionamento das duas começa a evoluir gradativamente da indiferença à paixão.
Essa observação contínua por parte da pintora a faz criar uma certa curiosidade compulsiva pelo seu objeto de estudo, um querer saber mais, que é mútuo. Esse desejo por conhecimento é expresso principalmente a partir de olhares e não de palavras, abrindo um espaço bem amplo para a contemplação da fotografia do filme, muito bem dirigida por Claire Mathon.
Os cenários e figurinos de Retrato de uma Jovem em Chamas são tão lindos que o filme parece uma pintura a óleo móvel. No entanto, apesar dos momentos iniciais serem, num geral, bem quietos, ainda pode-se captar esse desejo de aproximação em alguns gestos e até mesmo em pequenas perguntas – “Como é sua jovem patroa?”, Marianne pergunta a uma empregada, em uma das cenas iniciais.
Logo, a beleza da observação derruba a barreira entre as duas e o que era apenas curiosidade vai se tornando, aos poucos, empatia, admiração, estima, atração… amor. A partir do poder da observação, elas, inconscientemente, se conhecem a fundo e, todos esses sentimentos surgem de forma sútil. Elas se enxergam.
É possível perceber bem claramente a relação entre a arte e o ser humano retratada no filme Retrato de uma Jovem em Chamas e o quanto essa relação pode ser importante para as nossas vidas, seja no âmbito pessoal, revelando a compreensão própria de desejos e sonhos, ou na questão de relacionamentos. No caso das personagens, a arte serve como um instrumento social bem sensível; num decorrer de duas horas, é possível ver as conexões sentimentais criadas entre as elas a partir de músicas, pinturas, literatura e esculturas.
Marianne transpira arte, vive por ela e só conhece ela – conhece mais dela do que conhece a si própria; já Heloïse, tão privada das pessoas e da natureza ao seu redor, só conhece as suas emoções e não sabia que era possível compreendê-las tão bem a partir de algo do mundo exterior. Esses opostos se chocam e elas duas entram em contato com um mundo muito mais vulnerável do que qualquer outra coisa que elas já haviam conhecido.
Sendo assim, a arte é a matéria e a linguagem principal do filme, o elemento mais fundamental dele: Sem ela, a narrativa não iria para frente e as personagens seriam incapazes de evoluir, tanto individualmente quanto como observadas como um par. É a partir da arte que elas se conhecem tão intensamente, de uma forma quase inevitável, se tornando, então, vitaliciamente interligadas.