A potência desse filme me atingiu no âmago, e foi surpreendente do início ao fim. Confesso que não esperava tanto.
Vamos voltar só um pouquinho no tempo. Quando em 2005, a Marvel lançou uma proposta para uma nova série de adaptações fílmica baseadas em quadrinhos que seguiriam uma tendência anos depois, por Jenkins, em seu livro “Cultura da Convergência”.
Inicialmente seria produzido uma série de cinco adaptações de famosos personagens de quadrinhos que resultaria em um sexto filme, um crossover, que reuniria as personagens dos filmes anteriores. Cada uma dessas cinco adaptações dialogaria com as demais, mostrando que todas fazem parte de um mesmo universo, da mesma forma como ocorre nos quadrinhos.
Além de dialogarem entre si, tais narrativas dividiriam o universo diegético, ainda, com outras narrativas apresentadas em diferentes plataformas. Todas essas narrativas interligadas formam o que Jenkins compreende como “narrativa transmídia”, que é uma estratégia de comunicação que tem uma história dividida em algumas partes e cada parte é distribuída por aquela plataforma que melhor possa representá-la.
Essa narrativa transmídia é uma nova estética que surgiu em respostas à convergência das mídias. É a arte da construção de um universo.
Esse tipo de narrativa cria um universo ficcional podendo ou não se assemelhar ao universo real em que vivemos, a realidade afílmica. Quando assistimos a um desses filmes podemos reconhecer o que nos parece verossímil em comparação ao mundo que pode ser verificado através das nossas experiências, e o que tomamos como absurdo e impossível de acontecer na nossa realidade, mas que normalmente pode acontecer no universo ficcional da narrativa.
Se a ficção tem o poder de criar mundos diferentes do nosso, a narrativa transmídia consegue criar mais facilmente universos inteiros e passíveis de expansão. Pois cada mídia tem suas especificidades de criação de sentidos e de efeitos, o que aumenta a gama de reações e respostas estéticas que essa experiência narrativa pode causar.
Não há dúvidas quanto à imensidão e o poder de expansão do Universo Marvel. Ele comporta uma série de mundos, personagens e história que ocorrem simultaneamente numa mesma dimensão ou em dimensões diferentes, e para que novas histórias sejam criadas ou para dar nós nos pontos que por ventura se encontram desatados, novas dimensões são criadas ou personagens são reimaginados para que possam transitar por mundos distintos, terem origens diferentes, viverem em épocas diferentes das suas histórias anteriores e viver várias aventuras.
Exatamente por isso que eu fiquei um pouco receosa quanto a organicidade do roteiro desse filme, que faz parte da terceira fase dos filmes do Universo Cinematográfico Marvel, por conta de reunir todos os personagens de outros planetas e dimensões que vimos, e que também possuem uma historicidade singular, camadas profundas, histórias completamente diferentes umas das outras, e pensamentos que podem divergir no âmbito de vários aspectos morais, pois, se aqui no planeta Terra temos guerras e mais guerras por ideias que se divergem, quanto a cultura, a religião, a política, imagina o quanto não seria tão cósmicamente maior essas diferenças comparados a outros planetas?
Tecnicamente o filme é incrível, e aquela minha expectativa sobre a forma orgânica que o roteiro poderia encontrar dificuldades em nos apresentar foi totalmente superada.
Todos os personagens tiveram um desenvolvimento muito importante para o objetivo coletivo. Os personagens tomaram uma forma mais simbólica. O filme ganhou um tom muito mais filosófico, fazendo com que os personagens fossem facilmente vistos como arquétipos.
O roteiro acerta quando distribui os heróis em grupos, todos com o mesmo objetivo final, porém com diferentes razões e opiniões. É claro que, com tantos personagens e pouco tempo de exibição, alguns ficaram com papéis secundários para que outros pudessem brilhar mais. E isso de forma alguma incomodou o grande público, acredito eu.
Saí do cinema e as pessoas estavam atônitas, eu mais ainda por que muita coisa realmente não esperava acontecer.
A trilha sonora busca a atenção do público a toda momento. É “clássica”, não ousa muito, só tem mesmo a pretensão de fazer você estar a par dos sentimentos e momentos mais tensos. Isso acontece por que ela complementa o que é passado imageticamente, e não contraria nenhuma ação dos personagens.
A fotografia do filme realmente foi um pouco modificada, a gente percebe o tom mais dramático nas cores, que foram bem menos saturadas, e até mesmo nos planos, que estão sempre detalhando a feição de algum personagem.
A construção do antagonista é o que mais surpreende. Thanos não é um vilão, propriamente dito, e isso a gente vai perceber ao longo do seu desenvolvimento na trama e o arco narrativo da sua personagem. Ele tem razões muito pertinentes para seguir com seu objetivo que já duram anos e anos. Thanos pode ser visto e analisado de tantas maneiras que fica difícil por onde começar.
Ele consegue ser um personagem que a gente julga estar fazendo algo de forma errada, por mais que tenha tamanha profundidade racional pra sua compreensão, e um simbolismo muito explícito e importante de abordar em filmes dessa magnitude de audiência, mas mesmo assim, ele consegue despertar certa identificação por parte do público.
Se formos analisar psicologicamente, é um personagem nada maniqueísta, possui extrema profundidade psicológica e tridimensional. É falho, e é por isso que talvez você se identifique e reconheça como verossímil muito mais do que qualquer herói.
A personalidade de Thanos foi claramente baseada em Adolf Hitler. Sabendo disso, você já pode imaginar quais as intenções desse personagem. Porém, Thanos não pretende extinguir uma raça para que outra se sobressaia e se mantenha pura. Thanos quer encontrar o equilíbrio, e ele acredita que dizimando metade da população de um planeta isso estará contribuindo para o próprio planeta e para a raça que habita ele. Como eu disse, humanamente falando, isso é algo absurdo, mas Thanos acredita tão fielmente nisso, que sua ações só nos mostram o quanto ele não é apenas um vilão ambicioso.
Thanos também tem um papel simbólico dentro dessa narrativa. Ele é uma espécie de acelerador de ciclos, se considerarmos a queda de uma civilização para o renascimento de outra. Thanos dizimava várias raças de diversos planetas, e consequentemente transformava toda aquela civilização, muitas vezes com muito sucesso. E esse é o seu maior discurso durante o filme, e segue firme até o final. É realmente um personagem com objetivos muito bem definidos.
Não é apenas uma grande e terrível guerra cósmica, logo que, o filme nos conduz para um reflexão filosófica e política extremamente profundas. E todos os símbolos e mitos, todos os arquétipos, todas as questões da humanidade estão ali, porém tão bem posicionados, que acaba se revelando um filme para o grande público, mas também para os amantes dos filmes mais “cults”.
Claro, essa foi minha interpretação ao ver esse filme, e o comparando com os quadrinhos, tem muitas coisas que foram adaptadas, ou pelo menos, ainda não apareceram, e esses objetivos mostrados nesse filme serviram como consequência de algo que está muito mais profundo por trás disso. Mas, veremos.
O tom cômico fica com o grupo dos Guardiões das Galáxias, principalmente, e sinceramente achei que ponderaram bem mais nas piadas, que funcionam na maioria das vezes e isso é algo muito difícil, logo que os personagens agem de forma “relaxada” em momentos muito tensos, como se, sei lá, eles não estivessem realmente acreditando na magnitude do perigo que está bem na cara deles.
Assim como o nosso universo real, o Universo Cinematográfico Marvel tem configurações bastante complexas e um tamanho imensurável. Nada do que ocorre nas histórias apresentadas acontece por acaso. Cada evento narrado tem uma causa e um efeito ou consequência que acaba por desencadear novos eventos dentro do Universo, estando, assim, tudo intimamente interligado.