Existe uma canção chamada “Soldier, Poet, King” (soldado, poeta, rei) que narra como as diferentes formas de poder moldam a história, em Gladiador 2, Lucius Verus (interpretado por Paul Mescal) e os 3 arquétipos de forma brilhante e acachapante.
Como soldado, o herdeiro perdido do trono do Império Romano é inescrupuloso e avassalador; como poeta, tem um olhar sensível e delicado para encontrar a arte nos detalhes do caos quase que paradoxal em contraste com sua língua de chicote que faz arder tanto quanto o corte de uma afiada espada.
Como “rei”, Lucius carrega consigo a revolta e raiva de uma vida de injustiça e crueldade infligida por aqueles que detém o poder, mas também carrega o forte idealismo de que move a luta por um futuro melhor construído por aqueles que sequer tiveram tempo de vislumbrar algo além da vida de exploração sob o regime imperialista romano.
É quase paradoxal observar tantas nuances em arquétipos que são tão antagônicos entre si, porém, o que há de mais humano do que as nossas próprias contradições frente à frágil ideia de civilização que construímos com o sangue e sofrimento alheio?
Apesar de levar alguns conceitos e momentos da história antiga ao superlativo e beirar o fantasioso, Gladiador 2 consegue se utilizar dos absurdos para ilustrar o castelo de cristal, a criatura viva e reativa que Roma se tornou sob o governo dos imperadores gêmeos Caracalla e Geta (Fred Hechinger e Joseph Quinn, respectivamente).
Gladiador 2 de fato não se importa em não ser “historicamente correto”, mas sim em usar elementos bem estabelecidos e reconhecíveis pela audiência para contar uma história plausível sobre a corrupção do ser humano pelo poder e a fragilidade das instituições.
Os imperadores Caracalla e Geta governam o império com um punho de ferro, focado no expansionismo selvagem e na conquista de territórios pelo derramamento de sangue dos povos considerados inferiores.
A total ausência de misericórdia e a violência brutal que permeiam cada canto daquela cidade estão personificadas na figura dos irmãos, que não são nem um pouco contidos no seu fascínio pela carnificina e brutalidade. Dessa forma, a Roma de Gladiador 2 é um espelho de seus regentes: desde a plebe miserável que ainda sim se sente poderosa o suficiente para tratar com completo desprezo os bárbaros, a máquina de moer soldados que é o poderoso exército romano, tudo isso culminando no bastião máximo da sociedade romana, o Coliseu.
É impossível falar de Roma sem abordar a violência recreativa na sua mais pura encarnação, tanto em carne e osso como em alicerces de concreto, que é o Coliseu. O coliseu de Ridley Scott abandona quaisquer restrições para escancarar o fascínio coletivo pela violência, e a quão sedutora a desgraça alheia pode ser a ponto de sustentar um dos maiores impérios da civilização humana. A arena transforma-se no maior picadeiro do entretenimento sádico, com uma “tecnologia” que pode ser equiparada, dada as devidas proporções, à indústria por trás das arenas de Jogos Vorazes.
Essa licença poética do diretor em montar as batalhas do Coliseu pode incomodar alguns espectadores, pois de fato algumas cenas são bem desgarradas da realidade histórica e até das batalhas do primeiro filme que parecem “pé no chão” quando comparadas à algumas decisões escalafobéticas que Scott utiliza para demonstrar o poderio sádico daquela nação.
Com exceção da batalha que abre o filme que é bem “tímida” e o que você esperaria da arte da guerra romana, todas as outras se transformam no suprassumo do “mais e maior” que tende a acompanhar sequências de filmes icônicos. Contudo, a pirotecnia da arena nos faz indagar “Será que a plausibilidade desses acontecimentos realmente importa?”.
Seja considerando os excessos valorosos pelo puro entretenimento de ver o Coliseu em seu apogeu, ou considerando como recurso narrativo para trazer o caráter epopéico da obra, você acaba sendo colocado no lugar da própria plateia: vendo um espetáculo que oprime os sentidos, a consciência e tentando encontrar o significado daquilo, a justificativa da sua existência.
Não é à toa que o Império romano é o “Império Romano” do imaginário coletivo. Além do notório poderio armamentista, a própria fundação de Roma atravessa a antiguidade até a nossa realidade com a República, os senadores, as intrigas políticas, as arenas, os césares, a língua, a religião. Dessa forma, a escolha de representar a “História fora da história” apenas usando seus elementos para representar algo que pode ou não ter acontecido parece segura. Porém usar elementos tão cristalizados e imponentes assim
à revelia pode ser uma linha tênue entre a licença poética deliberada e a caricatura, mas isso definitivamente não é um problema para Gladiador 2.
Os louros devem ser dados a todos os que construíram a identidade visual do filme, se existe questionamento do quão verossímil são os acontecimentos do roteiro, essa dúvida é anulada pelo detalhamento que encontramos naquele mundo.
Das ruas apertadas e claustrofóbicas minimamente pensadas para serem caóticas ao detalhe dos tecidos fluídos e coloridos das vestes dos ricos e poderosos, tudo ali conta uma história e sustenta as excentricidades narrativas. O filme é um banquete para os olhos, e os elementos visuais funcionam como alicerce para respaldar os aspectos doentios daquela sociedade.
A opulência é tanto escancarada como sutil: vemos a corte e os ricos se esbaldado em festejos onde até um rinoceronte é servido, animal esse que atualmente é dificilmente visto pela maioria da população hoje em dia, e corre grave risco de deixar de existir, é mais um elemento recreativo. Se come a carne, se raspa as migalhas do marfim, se monta rinocerontes para matar.
A violência opressiva também é refletida nos animais, que possuem praticamente caráter unicamente bestial e sedenta por sangue. São tanto vítimas como algozes forçados da desgraça humana e se os próprios gladiadores não tem poder de escolha frente à carnificina brutal do império, o que será dos animais que são vistos como meros acessórios?
Outra escolha interessante na representação dos animais no filme está na escolha dos cavalos. O uso das cores das pelagens muitas vezes comunicam os valores e as virtudes de quem os monta, regularmente vemos cavalos tordilhos e de pelagens claras associados aos honrados e bons. A pelagem impecavelmente branca continua imaculada após o derramamento de sangue, enquanto os cavalos de pelagens escuras como alazões e castanho estão associados a quem a sociedade considera “do povo”, “sujos” e sem importância. Cavalos friesians, pretos e claramente mais altos, sempre presentes nas cenas em que a morte é pautada.
Os personagens estão extremamente bem caracterizados, a maquiagem avermelhada nos olhos dos gêmeos contrastanto com a pele excessivamente alva transforma os monarcas em suas próprias estátuas que transcendem o tempo e o espaço.
Os imperadores são a encarnação divina na terra, e sequer parecem humanos e não se dão o trabalho de remeter a humanidade. Essa atmosfera régia de todos os personagens ricos e poderosos é um recado claro: ninguém vai até Roma à passeio, todos que estão lá podem se dar ao luxo de parecerem inumanos, afinal a partir do momento em que se escolhe agir pelos interesses de Roma, sai-se da vida e se entra na história.
Denzel Washington ilustra brilhantemente esse modelo de existência dos servos de Roma, com os conflitos e tribulações de Macrinus, um mestre de escravos ambicioso e inescrupuloso. Assim como ele, o restante do elenco está bem acertado e extremamente imponente. Esse definitivamente não é um filme de diálogos expositivos e falas prolixas. No melhor estilo sofista, todos sabem bem o que falar e quando falar. No geral falam pouco, mas dizem a que veio.
O filme consegue caminhar com os próprios pés, e contar uma história interessante e cativante sem se escorar demais em seu predecessor. Apesar de termos claros momentos de nostalgia deliberada e referências ao Gladiador original, os momentos em que isso ocorre são bem acertados pelo roteiro e não usam vulgarmente. As reverências e homenagem tem o peso necessário e pontual.
As reflexões acerca do caráter sedutor da violência e poder, e as consequência catastróficas nos mais poderosos impérios e suas sociedades são interessantes e inspiradas. O incômodo que fica é justamente a lembrança de que a nossa realidade não está tão distante da realidade romana, tanto para o bem quanto para o mau.
Em um mundo onde se coloca cada vez mais em xeque a produção de sequências, prequels, e spin-offs, Gladiador 2 justifica sua existência pelo direito de conquista.