Várias serpentes deslizam na capa e isso pode fazer algumas pessoas já olharem torto para o livro como também pode convidar outras a abrirem-no. A princípio, o espectador pode imaginar uma história empolgante… E é justamente assim que Serpentário não começa.
Choque à parte, não entenda errado. O livro é bom. MUITO BOM. Continue lendo esta resenha e vai entender…
“É um mundo de predadores, Carol. Temos que fazer de tudo para ficar no topo da cadeia alimentar”
Serpentário foi criado por Felipe Castilho, um escritor brasileiro também autor de Ordem Vermelha, e publicado pela editora Intrínseca em agosto. Felipe é mais conhecido pela série O Legado Folclórico e já chegou a ser indicado ao prêmio Jabuti 2017 com o quadrinho Savana de Pedra. Sua marca é trazer a fantasia nacional ao conhecimento dos brasileiros, o que parece ser meio redundante, mas diante de nossa cultura social se faz totalmente necessário.
A história, tal como IT – A coisa, se passa em dois momentos: adolescência e idade adulta e é entrecortada por fragmentos atemporais – tanto do passado como do futuro – que complementam e amplificam a metáfora da Ilha das Cobras e o rastejar da serpente entre os tempos… É justamente um desses capítulos que abrem o livro, situando o leitor em um espaço-tempo longínquo e nada agradável.
A trama traz um personagem morto logo de início, ou melhor, deixado para morrer por seus amigos ricos… Paulo, o único pobre, ressurge dezenove anos depois como um rico empresário, para a surpresa de seus amigos, que passaram o mesmo tempo remoendo as sequelas de terem-no deixado para trás.
De início, Felipe começa explicando, através do vai e vem que permeia a história, como a monótona vida dos personagens foi transformada pelo episódio fatídico de ter perdido o amigo Paulo. Este só é mencionado até então e só vai colorir a história bem depois. Talvez por causa disso – e também da demora para o antagonista surgir de fato – a narrativa soe um pouco cansativa no começo.
Apesar disso, ela mantém o leitor desperto e interessado em descobrir o misterioso episódio, que não é narrado em nenhum momento senão lá nas páginas finais do livro. Esse mistério, de entender quem é a serpente, a ilha, e o que elas significam, rasteja por toda a narrativa.
As palavras foram muito bem escolhidas por Castilho, que navega entre o saudosismo português e o dialeto periférico, abrilhantando a experiência literária e evidenciando a mescla cultural que é o brasileiro. Isso, inclusive, fica muito marcado através das referências pop e as comparações – que a princípio parece ser nada a ver com nada – que forma uma concha de retalhos colorida que tanto encanta os estrangeiros por nossa terra. Afinal, o colorido brasileiro é lindo. Por isso o carnaval foi transformado aqui e ganhou nossa personalidade.
Em paralelo ao nacionalismo suavizado de Castilho, o romance provoca – e aqui está a essência da obra – uma metáfora muito similar ao livro mencionado de Stephen King. A serpente, em suas variadas formas e cores, possui características semelhantes ao ser humano, como trocar de pele, por exemplo, mas ainda assim nunca deixar de ser serpente.
“A pele de alguém é a armadura que protege sua alma. Juntas, alma e pele transmitem força através da linhagem. Linhagem é história, e histórias que se cruzam são fortalezas e tendem a ser lembradas”
O que é então este ser? Ele é o resquício de um passado vivido e integrado ao cerne de uma pessoa que configura uma palavrinha tão arraigada e sustentada como personalidade. Esta essência inserida no ser humano é construída desde a infância e assim que é moldada carrega as experiências em forma de memórias que rastejam dentro da gente por toda vida. Não é de brincadeira que Felipe fica oscilando entre infância e fase adulta… o que ele quer dizer com isso é que, por mais que troquemos de pele o tempo inteiro – e vamos assumindo outras idades; adolescência, adulta e idosa –, ainda somos a mesma serpente que formamos quando éramos pequenos. Nós carregamos nossos desejos, medos, sonhos e experiências desde que nos descobrimos vivos.
“Nomes são superestimados e desaparecem da mente dos nossos amigos mais rápido que as boas ações que fazemos para obter a aprovação deles”
Deve-se a isso o motivo do vai e vem no tempo. Independente do momento ou fase que estamos em nossa vida, somos aquela mesma serpente (desejos + sonhos + medos) pequenina brincando numa ilha chamada infância. Não há como negar. Somos. E até o dia que finalmente poderemos descansar nossa cabeça para sempre no seio da terra seremos crianças sem saber nada da vida.
Além desse precioso diálogo que Felipe Castilho nos propõe, há ainda um passeio suave sobre questões que sempre estiveram presentes na humanidade – talvez por isso a ilha perdida no espaço-tempo sempre volte – como racismo e homofobia… enfim, preconceito. E é muito interessante abordar este tema no Brasil porque aqui é a terra da confluência de muitas culturas distintas… e nas sinapses entre elas, às vezes a eletricidade machuca, em vez de ligar a luz.
Ainda há uma provocação ao consumismo que caracteriza a vida urbana e social qual todos nós estamos inseridos globalmente originado pela ganância humana (um dos sete pecados capitais, que podem ser metaforizados como serpentes).
“Pois aquela raça, híbrida dos seus e dos outros, cultuava essa divindade que era o consumo. O excesso. O ter. Todos eram como serpentes mordendo a própria cauda e se alimentando da própria existência”
Com todo esse carnaval muito bem amarrado pela serpente, Felipe Castilho presenteia-nos com nossas próprias cobras, animais que por muitas vezes foram sinônimo de sabedoria, saúde (Será que é à toa que Caroline quer ser médica? Rs), traição, poder, ambição e, até mesmo, pecado; elas nada mais são que nossos “eus” rastejantes dentro de nós.
Também não é aleatória a escolha do réveillon (que de etimologia francesa significa despertar, acordar) como momento crucial para os acontecimentos do livro, afinal é quando jogamos nossas peles velhas para trás e assumimos novas identidades…