Coriolanus Snow (personagen central de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes) é sem dúvidas uma figura difícil de ser ignorada.
Consolidado por Donald Sutherland na trilogia original, temos agora a oportunidade de entender através de um jovem Snow (Tom Blyth) como se deu a construção da psique do grande tirano a frente de Panem em A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes. Se Donald Sutherland entregou tudo ao longo da trilogia original, Tom Blyth não fica atrás com uma interpretação impecável.
Suzanne Colins acerta novamente ao introduzir uma avaliação minuciosa sobre os aspectos psicológicos que regem as relações humanas, ao mesmo tempo que traz novamente uma poderosa crítica social, envolvendo temas atuais relacionados as relações de poder que regem qualquer sociedade humana.
A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes tem em seu universo distópico temas muito atuais que provocam a uma reflexão profunda a respeito das estruturas de poder e como somos moldados através delas.
A história da fantasmagórica décima edição dos jogos vorazes nos serve como pano de fundo para o maior questionamento de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes: Enquanto seres humanos, somos inerentemente maus? Ou precisamos de um empurrãozinho para que a maldade se instaure? Seria o mundo uma grande representação dos Jogos Vorazes? Uma verdadeira arena a céu aberto?
É através da jornada de um jovem e inexperiente Coryo (como fora apelidado por sua doce prima Tigris) que temos alguns desses questionamentos respondidos. Ao menos de acordo com a perspectiva e visão de mundo em construção do nosso protagonista. Um adolescente na faixa dos 18 anos, com pensamentos reacionários alimentados pelo rancor originado pela perda de status e privilégios de sua família.
Sejanus Plinth (Josh Andres Rivera), um de seus colegas de classe, acaba sendo um elemento chave para garantir leveza a trama, demonstrando empatia pelos tributos e pelas pessoas dos distritos – visto que apesar de toda a sua riqueza, Sejanus nasceu no distrito 2, e viveu no meio daquelas pessoas antes da ascensão de seu pai. Enquanto os Snows perderam tudo com a guerra, os Plinth ascenderam devido ao comércio de munições.
Movido pela ambição de recuperar uma posição de prestígio para sua família, Coryo acaba aceitando fazer parte de um experimento social como mentor de um dos tributos nos Jogos Vorazes, afim de se destacar e conseguir uma bolsa de estudos para a Universidade.
E ao que no começo parece uma piada de mau gosto, quando seu rival reitor Casca Highbottom (Peter Dinklage) sorteia uma menina pequena e franzina do Distrito 12 para ser o seu tributo, Lucy Gray Baird (Rachel Zegler) acaba se mostrando uma oportunidade única para desenvolver sentimentos de compaixão e empatia no jovem Snow. O estudante acaba se encantando pela menina ou no mínimo ficando intrigado por sua coragem, audácia, e pela sua voz.
Lucy é uma figura excêntrica, magnética, e que naturalmente desperta a curiosidade de todos por onde passa. Aproveito para elogiar o trabalho de Rachel, que não prometeu nada, mas entregou tudo com uma voz de dar inveja, prendendo a atenção e encantando o espectador. Mesmo com a antipatia de parte do público que não ficou satisfeito com o seu cast, eu defendo que a jovem fez jus a personagem, trazendo consigo o magnetismo e charme de Lucy, tal como traduziu sua excentricidade na medida certa.
A grande ironia referente ao sorteio, é que o tiro saiu pela culatra, e Highbottom acaba colocando Snow em evidência através da charmosa menina magricela do distrito 12. Não demora muito até que a idealizadora dos jogos, Dra. Gaul (Viola Davis), volte seus olhos para o estudante. A atuação de Viola, mesmo sem tanto tempo de tela, acaba sendo um show à parte fazendo jus a sua reputação impecável.
Ao mesmo tempo em que Snow se compadece pela garota, o roteiro é cirúrgico em demonstrar a relação entre afeto e ambição que floresce dentro dele. Ainda que o jovem se compadeça pela menina, ele enxerga nela uma ferramenta para conseguir alcançar seus objetivos, uma vez que ela traz todos os holofotes pra si, fazendo com que Snow tenha o destaque que tanto buscava.
A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes é precisa em sua construção, pois de pouco em pouco, acaba ficando evidente que o que motiva as ações de Coriolanus ao longo de sua jornada é sempre o seu próprio ganho pessoal e não o altruísmo genuíno. Algo que fica mais evidente no livro, pois conseguimos habitar seus pensamentos, mas no filme se apresenta de forma mais sutil. Nada que ele faz é por acaso. Seu senso ético e moral se mostra bem flexível ao desenrolar da trama, uma vez que constantemente pegamos Snow justificando suas ações, ainda que terríveis, e não sentindo o remorso necessário para que se arrependesse de suas decisões.
Aproveito para parabenizar mais uma vez Tom Blyth e a direção do filme, que fazem com que as expressões do ator traduzam suas emoções, demonstrando apatia e falta de sensibilidade vão se instaurando com o passar dos acontecimentos.
A ironia de que um jovem Coriolanus Snow se apaixonou por tudo que vem a repudiar no futuro é simplesmente um deleite para os apreciadores do universo de Jogos Vorazes. Lucy Gray Bard é uma versão mais performática de Katniss Everdeen.
Snow se apaixona pela figura de Lucy, por sua arte, pela sua voz, e sem se dar conta acaba se deparando com questionamentos que nunca se passariam pela sua cabeça a respeito da tirania e injustiça promovida pela capital, presentes nas cantigas de Lucy.
Ainda que esses questionamentos não se frutifiquem, Lucy Gray planta as suas sementes. E mesmo que ambos sejam universos completamente diferentes, o protagonista não consegue resistir aos seus encantos. Símbolos como os tordos, ou a própria Árvore-forca, estão todos interligados a enigmática figura de Lucy Gray e o distrito 12, fantasmas que irão assombrá-lo durante a trilogia original.
A cada novo desafio e adversidade enfrentados pelo rapaz, vemos cada vez mais os sentimentos humanos como empatia, lealdade, amizade, se esvaindo e dando lugar um semblante endurecido, carregado de frieza e ambição. Fazendo que o jovem valide suas ações de acordo com o que consegue tirar de proveito delas. Cada vez mais brutal, e implacável, Snow parece não ter escrúpulos e nem mede esforços para conquistar seus objetivos.
Podemos dizer então que A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes se molda através das relações entre Lucy x Snow e Sejanus x Snow x Dra. Gaul. Onde a identificação entre a tirana idealizadora dos jogos e o ressentido jovem Snow parece levar a melhor, já que contempla seus ideais e sua visão de mundo com mais precisão. Snow parece concordar que sem o punho de ferro da Capital, o mundo se perderia em meio ao caos e a desordem. O que seria o mundo, senão uma arena a céu aberto?
Em um piscar de olhos, a civilidade se esvai entre os dedos, dando lugar aos nossos impulsos mais bestiais e primários. E se o mundo é uma arena, certamente Snow é o vitorioso. “Snow cai como a neve, sempre por cima de tudo.”
Por fim, nem mesmo o amor que sentia por Lucy foi capaz de fazer com que Coriolanus passasse por cima de suas ambições pessoais. A amizade com Sejanus não o impediu de querer garantir o seu próprio pescoço, e no final das contas ele não apenas entendia as motivações por trás das ações de Dra. Gaul, como se identificava com elas.
Em A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes um perfeito e encantador sociopata prevalece, assim como a neve, sempre caindo por cima de tudo e de todos.