(Enemy – Canadá, 2014 – 90 min, Suspense)
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Javier Gullón
Elenco: Jake Gyllenhaal, Sarah Gadon, Mélanie Laurent, Isabella Rossellini, Stephen R. Hart.
“O Caos é uma ordem ainda não lida – uma ordem por decifrar”
Denis Villeneuve é um diretor interessante. Todos os seus filmes possuem uma premissa curiosa, sinopses no mínimo instigantes, e, daqueles que eu pude assistir, posso dizer que são muito bons. Incêndios é fabuloso e perturbador, ainda que necessite de uma ou outra lapidação; Os suspeitos (Prisoners, não confundir com os suspeitos [the usual suspects] do Bryan Singer) é uma obra prima, roteiro e direção cirúrgicas e no limite suportável da tensão. Logicamente, saber que ele seria o responsável pela adaptação do livro “o homem duplicado” de José Saramago me deixou muito empolgado – e cada pôster ou material de divulgação do filme trazia mais expectativa, por conta de seu teor surrealista. O filme estreou. E deixa um pequeno quê de desapontamento, por um lado, mas traz instigantes perturbações por outro.
Este é o segundo longa no qual temos uma parceria de Denis Villeneuve e Jake Gyllenhaal (Jake esteve em Os Suspeitos). Aqui o ator demonstra seu talento inquestionável ao desempenhar bem o papel duplo: o depressivo Adam Bell, professor de historia, e o impulsivo e expansivo Anthony Claire, ator que adota o nome artístico de Daniel Saint-Claire. Para cada um dos personagens, Jake cria olhares, gestos e presenças opostas, visto que a personalidade de um é o extremo contrário do outro. Os figurinos e a arquitetura da casa de cada um deles também é fundamental para formarmos a opinião a cerca da personalidade dos personagens: O apartamento pequeno, escuro de Adam, suas roupas escuras e pesadas, em contrapartida ao amplo AP de Anthony e suas roupas mais casuais e desportivas. Ponto também para a cuidadosa ambientação da historia – Villeneuve conta sua historia em Toronto, nos anos atuais, criando adaptações necessárias ao texto original de Saramago – dos nomes dos personagens aos elementos tecnológicos atuais; Dvds ao invés de VHS, e o Google no lugar de toda uma epopeia para busca e aproximação do Duplo. (Sim, é uma pena que o protagonista não se chame mais Tertúliano!).
Já que já estamos na direção de arte, é importante citar os demais aspectos ‘técnicos’ que trazem uma beleza angustiante à narrativa. Contraposição da fotografia sóbria de um tom amarelado opaco de Nicolas Bolduc aos tons escuros, justaposição de planos longos recheados de simbolismo com os prédios cinzas e imponentes de Toronto, com a trilha de Danny Bensi e Saunder Jurriaans fomentam bem um clima de suspense e thriller, além do amarelo citado casar bem com a ideia de inveja da vida do outro, ilustrada no filme. “Algo vai acontecer, algo de trágico”, parecem anunciar todos esses elementos em conjuto. E isso desde seu emblemático inicio: com as primeiras imagens ambientativas, o recado na caixa postal; com o possível “sonho” sexualizado e perturbador no clube que evoca o kubrikiano “de olhos bem fechados”. E a partir daqui uma série de interpretações possíveis emergem – Sonho entre aspas pois em algum momento há a alusão ao clube, que não seria talvez apenas fantasístico. É magnifico também a maneira como o diretor conduz nossa apresentação dos personagens, nos levando a confundir, de inicio, quem é Adam ou quem é Anthony, quando estes surgem na tela nas primeiras vezes.
E é aqui que algo emperra. O ritmo do filme torna-se cansativo, e por vezes, toda contemplação simbológica que o diretor nos oferta periga não engatar. O suspense torna-se suspense demais na medida que nada ocorre – Não exatamente nada, pois em termos de ação dramática, há um mundo de conflitos sugeridos de forma sutil no personagem do professor Adam, e todo o seu movimento em direção a Anthony, mas é apenas em seus 30 minutos finais que o filme entra num espiral clímax. Acredito que o diretor se aventurou em uma tênue linha entre o simbolismo imagético (característico da linguagem cinematográfica uma vez que o cinema é uma linguagem visual, de imagens) – evocativamente claustrofóbico e angustiante neste caso – e o excesso de símbolos que podem soar desconexos ou ilógicos, e ainda que possuam uma lógica própria, tornam-se desinteressantes: aquela linha entre o extremamente complexo e do irritantemente ilegível, tendo aqui, talvez, dado dois passos a mais para além do legível.
Ou podemos ter tido um roteiro que constrói com cuidado demais sua trama centrada na angustia da identidade. Saramago discute, no material original, a perda da identidade em um mundo globalizado, que para importantes autores na temática como Guattari e Bauman, pasteuriza a noção de individualidades nas massas do consumo e de padrões estéticos, ao mesmo tempo em que exige individualidade. Fica claro então, no filme, os discursos dos papeis sociais, das diferentes personas dentro de cada único indivíduo, de que sempre haveria no humano o desejo de ser outra pessoa – não à toa que em qualquer história de gêmeos idênticos, há a derradeira troca de papeis. Mas não é, contudo, uma preocupação do filme deixar respostas fáceis ou conclusões redondas a cerca do tema.
Em seu perturbador final por exemplo, ou em todos os seus momentos mais surreais, o filme deixa diversas lacunas de lógicas cartesianas, promovendo um estranhamento inquietante no espectador. Intepretações não são nem um pouco impossíveis.
A escolha da presença de aranhas – que começam pequenas, passíveis de serem esmagadas com um salto (atentem, salto, mulher, feminilidade, significantes reunidos em um ambiente erotizado e sexual, mas num espetáculo controlado pelo consumo masculino) até surgirem monstruosamente grandes – remete automaticamente às obras de Louise Bourgeois. Sua exposição “O Retorno do Desejo Proibido” esteve em cartaz no MAM do Rio e trazia, entre suas obras principais, uma imensa escultura de ferro de uma aranha (aliás, não à toa, um formato bem parecido com as aranhas do filme, vide o pôster) chamada “Maman”. Sim, mamãe, em homenagem à mãe do artista. Não é só um fato curioso, então, que a personagem Helen (Sarah Gadon) esteja grávida (quem já viu o filme entenderá melhor a analogia, pois se eu comentar mais alguma coisa, perigo dar um grande spoiler). É comum também que aranhas estejam associadas à fobia e à angustia; mas também há quem trace associações com a sexualidade feminina – o próprio filme faz isso em seu início. E isso é algo que claramente desestruturam nossos protagonistas, vide a intensidade que Anthony proclama a exclusividade do sexo com sua esposa, e a maneira como cada mulher lida com a verdade do sexo – analogia da possibilidade de pluralidades na maneira de sentir prazer além da forma como nos acostumamos? Muito é possível. Além do viés da sexualidade e da perda de identidade, há muitas outras fechaduras que aquela chave com desenho da aranha pode abrir. Afinal de contas, para muitos o filme pode parecer um caos de metáforas e simbolismos, mas não nos esqueçamos do mantra repetido no filme: “o caos é uma ordem ainda não lida”.
É uma pena, contudo, que o ritmo do filme periga cair para o enfadonho/cansativo.
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