Uma cidade onde os mortos caminham, um lugar onde deuses habitavam e um território inóspito que faz todo o reino tremer… Elantris é tudo isso e muito mais. O título é o nome de uma terra pertencente ao reino de Arelon em que os mortos são jogados após serem apanhados pela Shaod, uma maldição que afligiu Elantris, transformando-a de divinal para infernal.
“Era como se Elantris estivesse empenhada em morrer, uma cidade cometendo suicídio”
Escrito por Brandon Sanderson – autor que conquistou prêmios como Hugo Award de Melhor Novela (2013) com The Emperor’s Soul e o Whitney Award por melhor obra especulada (2008) com Mistborn: o Herói das Eras – o livro foi publicado no Brasil em 2012 pela editora LeYa. Sanderson é um dos nomes mais bem comentados no universo fantástico literário, pois suas obras Mistborn, Coração de Aço e também Elantris lhe trouxeram muito sucesso.
O diferencial em seus livros é que ele tende a extrapolar o convencional já muito exercido no mundo fantástico e sempre coloca discussões anacrônicas que fazem sentido para quem está lendo, independente do tempo qual pertença. O mais interessante é que essas discussões pesadas acerca de religião, política e sociedade foram maravilhosamente bem combinada em Elantris. Sanderson não ignora o fator entretenimento.
Já no início do livro, ao leitor é explicado como Elantris era outrora. E no primeiro capítulo logo é levado para dentro da cidade, na intenção que conheça como ela é atualmente: um inferno. Lá, somos apresentados a um dos protagonistas, o príncipe Raoden, que tinha acabado de morrer. A história é entrecortada por Sarene, que viaja de sua terra natal para se casar com o príncipe; e pelo monge Hrathen que defende a religião de Jaddeth e chega em Arelon para converter as pessoas.
“O mundo precisa saber o que acontece com aqueles que blasfemam contra Jaddeth”
O conflito da história é desencadeado por Hrathen, que precisa fazer todo o reino se converter à fé em Jaddeth em apenas três meses para que o império qual ele representa não ataque o lugar, matando todos os ímpios. Esta informação não é compartilhada com rei Iadon, quem ele tenta forçar a conversão para facilitar seu trabalho.
“A igreja ensinava as bênçãos da unidade; era irônico que o único povo que praticasse esses ideais era aquele que havia sido condenado”
E assim Brandon Sanderson já começa a desenhar sua primeira crítica. Fica nítido, pela semelhança dos dogmas e pela história, que ele está colocando a religião católica – mascarada com outro nome – em perspectiva. O autor nos convida a lembrar que a fé cristã, pacífica hoje em dia, foi criada através do derramamento de muito sangue inocente. Essa história vermelha é o tempo todo temperada com o lembrete sobre os malefícios de um fanatismo descontrolado; lembrete esse bem representado pelo sacerdote Dilaf.
“Converter-se ou morrer, as duas decisões eram repugnantes”
Enquanto Hrathen tenta converter os lordes ricos de Arelon devido à recusa do rei Iadon, Sarene, uma princesa de outro reino, Teod, e nada estúpida, se reúne com outros nomes igualmente importantes para defender o território desta ameaça religiosa. Ela, por ser uma pessoa estudada, sabe que este monge representa uma fé que dizimou Duladel, uma terra próximo dali, então começa a construir uma frente para embarreirar as táticas de Hrathen.
Sarene facilmente é identificada pelo leitor como uma personagem símbolo do feminismo, pois em uma época em que mulheres não passavam de consortes bonitas para estar ao lado do rei e propagar o legado real, ela se apresenta com uma personalidade forte, com inteligência e perspicácia acima do normal e gosto por esportes ditos como masculinos, além de seu interesse pela política. Sarene é basicamente o agente invisível que mantém Arelon unido mesmo sob as constantes investidas de Hrathen e Dilaf.
“Todo mundo nesse país se sente tão ameaçado por uma mulher assertiva?”
Brandon Sanderson provoca o leitor a refletir que as mulheres, por mais que tenham sido subjugadas desde os primórdios da história, nunca ficaram sentadas aceitando passivamente a supremacia masculina.
“A verdade é que nenhum homem quer uma esposa inteligente”
Ao mesmo tempo, Sarene faz críticas duras diretamente à aristocracia que nasceu do declínio de Elantris. Ela os culpa pela fraqueza militar e cultural de Arelon, mas principalmente pelo menosprezo ao povo; e utiliza esse argumento como estopim para suas ideias. Fica evidente a velha discussão a respeito do enriquecimento dos que estão no poder através do trabalho duro da maioria que compõe o espaço inferior da pirâmide social. Até quando essa exploração dos menos favorecidos vai continuar?
“A prosperidade não precisa ser limitada a uma pequena porcentagem da população”
E com a cidade-título da obra, o autor faz uma das suas mais brilhantes reflexões. Elantris representa “o outro lado”, o “lugar para onde vamos”, “o lugar de descanso enterno”, ela é o símbolo do reino da morte. Contudo, como Elantris fora bela outrora, com lugares construídos em ouro, emanando magia por toda sua extensão e povoada por pessoas luminosas que eram consideradas deuses, Brandon nos diz que talvez a morte não seja um lugar ruim e que nós não precisamos temê-la.
“A verdade nunca será derrotada, Sarene. Ainda que as pessoas a esqueçam de vez em quando”
Isso fica mais claro quando logo depois ele faz de Elantris um lugar horrível, muito perto do que conhecemos catolicamente como inferno. Um local podre. Aconteceu um tremor certa vez que que provocou uma cratera em forma de risco em uma parte do reino e isso afetou a magia que mantinha Elantris magnífica, tornando-a podre e hostil. Quando Raoden descobre isso e repara esse acidente de uma maneira mágica, fatalmente a cidade volta a ser resplandecente outra vez.
“Pensei que tinha que ser louco para viver em Elantris, mas era a loucura que me impedia de ver a beleza”
Brandon Sanderson basicamente nos convida a inferir que o além-morte é assustador para a gente porque nós não o compreendemos, assim como Raoden não entendia porque Elantris havia perdido a magia. E se deixarmos nossos medos dominarem, talvez, o que resulte disso seja um inferno: o que muita gente teme. Ou seja, o autor nos faz pensar que está em nossas mãos se vamos para o “paraíso” ou para o “inferno”. Além de nos lembrar que a morte está sempre ao nosso lado… não é por acaso que Elantris faz divisa com os reinos.
“Talvez a morte fosse assim, a alma vagando em um interminável vazio sem luz”
A literatura de Sanderson é fluída e muito bem pontuada. Segue um ritmo gostoso e entretivo, contudo a única parte do livro que pode gerar um certo incômodo ao leitor são os nomes dos personagens. É claro, com um mundo totalmente novo criado para a história, as pessoas não tinham como se chamar “João”, “Fernando”, “Alice”; mas a nomenclatura atribuída pelo autor parece muitas vezes explorar a mesma sonoridade, cansando quem está lendo. Isso também prejudica na hora de identificar quem é quem, ainda mais por existirem tantos.
“O problema de ser inteligente é que todo mundo imagina que você está sempre planejando alguma coisa”
Todavia quando se analisa o glossário e observa as runas e seus significados, o leitor vai descobrir a genialidade por trás dos nomes. Eles foram todos esculpidos em palavras e sentidos que se conectam perfeitamente ao caráter de cada personagem. Só os melhores escritores nomeiam seus personagens utilizando sentidos.
Ao terminar a leitura, é possível identificar o gostinho de ter participado de um ensaio resumido sobre a sociedade, suas origens políticas e religiosas, bem como o egoísmo dos poderosos massacrando os que estão por baixo até os dias atuais.
“É verdade toda essa bobagem de que a posição social está relacionada ao dinheiro? (…) Pura verdade – Sarene confirmou”
“Tempos difíceis deixam as pessoas dispostas a aceitar um homem que prega mudanças”
Brandon Sanderson já manifestou que tem o projeto de continuar Elantris, mas não deixou claro quando fará isso. Entretanto afirmou que a nova história vai se passar dez anos após aos eventos narrados na trama. Para quem não quiser esperar, pode conferir o conto A Esperança de Elantris, que traz situações paralelas ao livro, contribuindo para expandir o universo.
Em 2013, ele escreveu uma noveleta chamada A Alma do Imperador também dentro deste contexto, mas em um território não explorado no livro. Segundo o autor, não é necessário ler Elantris para entender os acontecimentos desta novela.