O outro mundo, o outro lado, submundo, além… Quantos nomes inventamos para intitular o lugar mítico de onde ninguém voltou? Quantas perguntas nos fazemos sobre o que vem após a morte? Quantas vezes fantasiamos sobre ela? Coraline é uma fábula que não apenas levanta essas questões, como também propõe uma resposta: o outro mundo pode ser um espelho do nosso mundo.
Coraline é um livro escrito pelo autor multipremiado Neil Gaiman e publicado originalmente em 2002. No ano seguinte a editora Rocco trouxe uma edição deslumbrante para o Brasil com desenhos de Dave Mckean. Mas no mês passado a bola passou para a editora Intrínseca, que conseguiu se superar e trazer uma belíssima edição em capa dura com desenhos de Chris Riddell, ilustrador que já trabalhou em mais dois livros de Gaiman: O Livro do Cemitério e A Bela e A Adormecida.
O romance de Gaiman conquistou dois importantes grandes prêmios, o Hugo (2003) e o Nebula (2004). Mas o autor já está muito a acostumado a ser premiado, pois já escreveu obras inesquecíveis como Deuses Americanos, Os Filhos de Anansi, Lugar Nenhum, O Oceano no Fim do Caminho, O Livro do Cemitério, Orquídea Negra, Os Livros da Magia e, seu trabalho mais sublime e notoriamente artístico, Sandman.
O livro ganhou uma adaptação para o cinema em 2009 chamado de Coraline e o Mundo Secreto, que foi bem recebido pela mídia e pelos cinéfilos. Ele também foi adaptado para um grafic novel em 2002 com os traços do ilustrador Craig Russell, impresso no Brasil como a primeira HQ da Rocco.
Coraline é o nome da protagonista da história que tem uma necessidade intrínseca de explorar os ambientes, ou seja, é uma aventureira. Quando ela se muda para sua nova casa, descobre uma porta trancada que dá para um corredor misterioso que a conduz para uma casa exatamente igual à sua. A única diferença era que tudo ali era perfeito! Contudo havia algo estranho: todas as pessoas tinham botões negros no lugar dos olhos.
“Então a mulher se virou. Seu olhos pareciam grandes botões pretos”
A primeira experiência positiva do leitor, antes de começar a ler a história, é com a edição. A Intrínseca presenteou os fãs de Gaiman com um livro muito bonito e bem finalizado. Coraline vem com uma capa muito bem desenhada, com fitilho, com as extremidades das páginas pintadas em roxo, com ilustrações e com uma perfeita diagramação. O livro não deixa nada a desejar no quesito editorial. E com a história não é diferente.
Apesar de evocar um sentido sobre o além, o romance propicia múltiplas interpretações. Durante essa resenha trataremos sobre quatro, que serão a rasa, a profunda, a metafórica e a subliminar.
Interpretação Rasa – Premissa
A premissa de Coraline expõe um ensinamento punitivo sobre o perigo da curiosidade. A protagonista concentra três características que geralmente estão presentes em várias crianças; são elas a coragem, a inquietude e a curiosidade. Ela é uma pessoa aventureira que não consegue ficar parada e precisa descobrir novos lugares, novas pessoas ou novas histórias para se entreter, como muitas crianças. Porém essa conduta pode levá-la a lugares perigosos.
“Ser corajoso significa estar com medo, muito medo, mas mesmo assim fazer o que é certo”
Ao sair por aí se aventurando, os pequenos podem se perder, conhecer pessoas mal intencionadas, se machucar ou até mesmo sofrer um acidente fatal. Tal como na vida real, Coraline se depara com o perigo ao encontrar uma outra mãe esquisita que quer convencê-la a ficar ali para sempre, ou seja, sequestrá-la.
Nesse sentido, o romance se transforma em um alerta ao pais para que eles fiquem sempre conscientes de onde seus filhos estão.
Interpretação Profunda – Mundo pré-construído
Também em relação à premissa da história, Gaiman escreveu uma situação fabular que abarca todos os seres humanos. Seguindo essa ideia, Coraline representa a mentalidade infantil humana ante a descoberta e exploração da vida. Todos nós temos uma curiosidade de conhecer o mundo e seus múltiplos caminhos. Quando a protagonista entra em uma nova casa, o evento pode ser entendido como o ser humano adentrando o novo mundo, chegando à vida.
Entretanto este mundo já existia antes de nascermos, e essa verdade é lembrada quando Coraline encontra o mundo secreto. À primeira vista, ele é perfeito, contendo tudo daquilo que ela mais gosta, ou seja, é convidativo. O fato dela explorar seu novo mundo perfeito representa o crescimento de uma pessoa, quando ela vai sendo paparicada pelo mundo, convidando-a a fazer parte dele.
“É assombroso que aquilo de que somos feitos esteja tão ligado à cama que acordamos pela manhã, e o mais assustador é a fragilidade disso”
O encanto é tão sedutor que as pessoas, tal como Coraline, quase não percebem que terão que pagar um alto preço por tudo aquilo. Para nós, o preço é nos inserirmos no sistema, e isso é simbolizado nos botões em vez de olhos. O custo para entrarmos neste mundo pré-concebido — que é empurrado a nós — é ficarmos cegos para o que realmente queremos, só enxergar aquilo que faz o mundo girar.
“Vocês, pessoas, têm nomes. É porque vocês não sabem quem são”
No momento que Coraline tivesse os botões costurados nos olhos, a Outra Mãe seria sua deusa e manipularia todos os seus passos. O mesmo acontece conosco quando decidimos abandonar nossa visão verdadeira para pertencer ao mundo, passamos a ser controlados por um mundo que estava aqui antes de nascermos; um mundo que coíbe e impede a criação da nossa própria realidade.
“Ela vai roubar sua vida e tudo de que é feita. Vai roubar tudo que é importante para você, para que só reste névoa e vapor. Ela vai levar sua alegria. Um dia, você vai acordar sem alma e sem coração. Você será apenas casca, trapo, um sonho, a memória de algo que se perdeu”
A ideia de um universo pré-construído fica bastante clara quando a Outra Mãe começa a desfazer o mundo secreto de Coraline, revelando o pano de fundo branco onde nada existe; uma tela em branco para nós pintarmos a vida que quisermos.
Interpretação Metafórica – Limiar
Outra interpretação que se pode ter lendo Coraline se relaciona com o limiar. Gaiman parece ser uma pessoa muito interessada neste assunto, pois tanto em Sandman quanto em Stardust – O Mistério da Estrela, Coraline também apresenta questões sobre uma barreira mítica que evidencia o contraste das coisas.
O limiar de Coraline é o portal que conecta os dois mundos, o real e o secreto. Ele permite que o leitor desenvolva questões sobre o que estes dois universos representam. Como a história se concentra no ensinamento de limites para as crianças, o limiar tem o papel de evidenciar que o cenário é a mente humana, concentrado precisamente no embate entre os desejos infantis e as regras.
O mundo real de Coraline simboliza o mundo de regras, onde ela tem que aprender a se comportar como uma cidadã. Este mesmo lugar restringe e implica com a personalidade dela que quer o tempo todo explorar os ambientes desconhecidos.
Já o secreto seria o lugar fantasioso imaginado pela criança, onde ela poderia fazer e ter tudo o que seus pais nãos deixam ou não lhe dão.
“Você não entende, não é? — disse ela — Eu não quero ter tudo. Ninguém quer. Não necessariamente. Que graça existira em ter tudo o que eu sempre quis? Assim, do nada, não teria o menor sentido. E depois?”
De acordo com esse pensamento, a história ensina como é perigoso viver no universo fantástico em que todos os seus desejos se realizam: a pessoa pode virar escravo dele para sempre, o que representa a perda da identidade.
Interpretação Subliminar – Morte
Enfim chegamos à questão do além. Assim como as interpretações acima, o romance de Neil Gaiman pode ser encarado como uma tentativa de compreender o que vem após a morte. Logo de cara, o leitor é contemplado com a ideia de um mundo secreto, uma outra casa onde estão outros pais… Essa construção faz clara referência ao universo desconhecido por todos os seres humanos que ironicamente é o lugar para onde todos irão. Lá, conjectura-se, que as pessoas poderão rever seus parentes, mas eles serão diferentes de como os conhecia em vida.
“Não há nada além daqui. Tudo que ela fez foi a casa, os pisos e as pessoas da casa. Ela fez e aguardou”
Dois símbolos fazem alusão clara à morte. O primeiro são os botões negros. O leitor vai perceber que os botões são o que prendem as pessoas naquele universo, são como elas conseguem enxergá-lo, assim como também são o ponto que as conquista. Ou seja, os botões representam o momento da morte e a permanência do morto no além. Todavia o que torna essa ideia mais evidente é a referência ao costume grego de colocar dois dracmas (moeda grega) sobre os olhos do morto, para que ele consiga pagar o Caronte (barqueiro) no além e chegar até seu destino final.
“Os nomes são as primeiras coisas a desaparecer depois que a respiração cessa e o coração para de bater. Nossa memória dura mais que nossa nome”
O outro símbolo é a Outra Mãe representando a própria Morte, como uma figura antropomórfica. É possível perceber que esta personagem é responsável por vigiar, construir e comandar o universo secreto descoberto por Coraline. Ela é quem costura os botões nos olhos, captura as pessoas (os três anjinhos são um exemplo) e as mantêm em seu mundo para sempre. Entretanto o que emancipa essa figura como a Morte é o fato dela precisar consumir novas vítimas para viver, o que é uma maneira subliminar de dizer que a Morte não existe sem os mortais.
“Ela roubou nossos corações e nossas almas, acabou com nossas vidas e então nos jogou aqui. Ela nos esqueceu na escuridão”
Quanta coisa um livrinho para criança pode dizer! A partir dessas quatro intepretações é possível perceber que Neil Gaiman não é apenas um autor que escreve histórias, mas sim um artista que presenteia o mundo com suas maravilhosas obras de arte.