Você sabe tudo o que aconteceu antes de nascer, mas não se lembra. O nascimento é o rompimento do que já existiu e a morte é a restituição do que existe. O Oceano no Fim do Caminho vem com uma proposta nostálgica de resgatar a vida que as pessoas viveram quando eram crianças, procurando nessa fantasia a realidade das coisas.
“Esse era o vazio. Não escuridão, não o nada. Isso era o que havia por debaixo da cortina transparente e tenuamente pintada de realidade”
Antes de começar a resenha é preciso deixar claro que este romance fabular só poderia ter sido concebido por um gênio. E não um gênio qualquer, mas sim Neil Gaiman.
O Oceano no Fim do Caminho foi publicado pela editora Intrínseca em junho de 2013. O trabalho mais conhecido e mais aclamado de Neil Gaiman, porém, é Sandman. Mas o autor possui outros romances de renome publicados também pela editora. É o caso de Mitologia Nórdica, Deuses Americanos, Lugar Nenhum, Os Filhos de Anansi, Alerta de Risco, João e Maria, A Verdade é uma caverna nas Montanhas Negras, o discurso Faça Boa Arte e, agora, impresso pela Intrínseca pela primeira vez em uma edição belíssima, Coraline.
O livro se inicia com a ida do protagonista a um funeral, mas ele decide revisitar uma fazenda para fugir das lamúrias inconvenientes do momento. E então retorna ao oceano de Lettie Hempstock e lembra da aventura que viveu com ela quando tinha apenas sete anos.
O romance já começa com o toque nostálgico pela gentileza e pelo preciosismo que Gaiman confere às palavras. Elas possuem sabor. Um sabor de infância, de fantasia, de verdade. E isso faz o leitor saboreá-las, em vez de apenas lê-las. Esse sabor constitui o tônus da história, envolvendo o leitor na atmosfera das possibilidades da infância. E é necessário que o leitor entre nesse jogo para lembrar que já houve um dia em que ele acreditou que tudo era possível, em que tudo era maior que a própria realidade.
“Livros eram mais confiáveis que pessoas”
E é justamente isso que o autor nos convida a refletir: o que é realidade? É uma pergunta ingênua a se fazer a um adulto, mas como Gaiman bem propõe, todos nós jamais fomos realmente adultos, ou melhor, sequer existe algum adulto de verdade.
Na infância é possível viver e aceitar as diferentes realidades que as crianças constroem para si, e é por isso que o romance inteiro se passa nela. Neil Gaiman, sabiamente, se apropria dessa ideia para lembrar às pessoas que a vida, seu mundo particular, ainda pode ser construída da melhor forma que lhes aprouverem. Ele utiliza o resgate à infância como arma para que elas encontrem suas verdadeiras vontades, pois segundo o autor, esses desejos nasceram naquela época e nunca as deixaram, mas ficaram apenas adormecidos.
“Os adultos também não se parecem com adultos por dentro. Por fora, são grandes e desatenciosos e sempre sabem o que estão fazendo. Por dentro, eles se parecem com o que sempre foram. Como que eram quando tinha sua idade. A verdade é que não existem adultos. Nenhum, no mundo inteirinho”
A ideia de Gaiman conflui perfeitamente com o que muitos psicólogos dizem sobre os medos e sobre as motivações das pessoas; que essas coisas surgem na infância e permeiam seus seres até o dia que morrem. É como se o interior das pessoas nunca crescesse de fato, apenas seu exterior, aquilo que elas mostram para o mundo que as acerca.
“Ninguém realmente se parece por fora com o que é de fato por dentro. Nem você. Nem Eu. As pessoas são muito mais complicadas que isso. É assim com todo mundo”
Essa busca pelo verdadeiro “eu” mágico que habita dentro de cada pessoa fica mais evidente quando a fantasia é mostrada dentro do livro. Para a mente infantil — que não foi conspurcada pelo cinzento ensinamento das regras e normas que regem a realidade habitual — magia é real. Gaiman coloca o leitor nesse lugar de lembrança, de que magia de fato é real, mas as pessoas esquecem isso porque estão ocupadas demais brincando de viver.
“Todo mundo já soube. Como disse antes. Não é nada especial saber como as coisas funcionam. E você precisa realmente deixar tudo para trás se quiser brincar”
A ironia é que é através dessa magia que uma pessoa tem poder para criar a própria realidade. E juntamente dessa reflexão vem o brilhantismo do autor em concatenar este poder aos livros. Gaiman enfatiza diversas vezes durante a narrativa o poder que os livros possuem, e que é através dele que um indivíduo consegue municiar sua mente — preencher o universo fantástico — para viver conforme o próprio desejo.
“Fui para outro lugar em minha cabeça, para dentro de um livro. Era para onde eu ia sempre que a vida real ficava muito difícil ou inflexível”
Além de lembrar esses valores, o autor ainda propõe uma reflexão sobre a existência das coisas. Afinal ele está falando o tempo todo que os seres humanos podem criar realidades, então, o que é de fato realidade? Na narrativa de Gaiman, a realidade é apenas um véu que cobre o verdadeiro mundo. E como um véu, ela é tecida, construída por quem a construiu. Mas quem constrói a realidade humana são os humanos. E o autor também aponta como os humanos realizam essa construção.
“A língua é o fundamento da construção de tudo”
O idioma é a primeira forma em que as pessoas conseguem estabelecer a ideia de mundo. Se não houvesse comunicação de um indivíduo com outro, não haveria mundo.
“Aquela era a língua do que é, e tudo que fosse falado nela se tornava realidade (…) Eu havia falado a língua da criação”
Então Gaiman consegue unificar tudo o que ele vinha narrando durante o romance nesta palavra: comunicação. Livros, histórias (reais ou não), aventuras infantis e tudo o que é comunicável constroem o véu que oculta o verdadeiro mundo. E o que é a infância senão uma história real que a pessoa viveu uma vez e para qual sempre quer voltar? E hoje ela oculta essa história com o véu de um cidadão bem sucedido?
O mundo comunicável entre as pessoas cobre este universo de verdades, e Gaiman tece algumas ideias sobre o que este universo significa. É dele que vem todas as coisas que existem e as outras das quais não se tem conhecimento. Neste universo tudo coexiste de modo diverso e espalhado. E é este o universo estampado na capa do livro: o oceano.
“Eu vi o mundo que eu andara desde o meu nascimento e compreendi sua fragilidade, entendi que a realidade que eu conhecia era uma fina camada de glacê num grande bolo de aniversário escuro revolvendo-se com larvas, pesadelos e fome. Eu vi o mundo de cima e de baixo. Vi que havia padrões, portões e caminhos além da realidade. Eu vi todas essas coisas e compreendi, e elas me preencheram, da mesma forma que a água do oceano me preenchia. Tudo sussurrava para dentro de mim. Tudo falava para tudo, e eu sabia tudo”
O oceano de Lettie Hempstock, que fica em sua fazenda no fim do caminho da cidadezinha, é retratado como o lugar do tudo, onde todas as coisas estão. É, de alguma forma, o símbolo do que aguada a pessoa quando ela morrer, bem como tudo o que existiu antes dela nascer. É bem como o título diz: O Oceano no Fim do Caminho, todo o conhecimento que nos aguarda quando chegarmos ao final da vida; conhecimento que só é possível em nossas vidas através da linguagem.
“Eu ficaria aqui até o fim dos tempos, num oceano que era o universo que era a alma que era tudo o que importava. Eu ficaria aqui para sempre”
E por fim, Gaiman sintetiza essas reflexões acerca do universo, do mundo e da vida que levamos no conceito de pessoa e o que isso implica. Ser uma pessoa muitas vezes nubla o que é ser um humano.
“Já é difícil o bastante estar vivo, tentando sobreviver no mundo e encontrar seu lugar nele, fazer as coisas de que se precisa para seguir em frente, sem se perguntar se aquilo que você acabou de fazer, o que quer que tenha sido, foi o suficiente para a pessoa que, se não morrera, desistira da própria vida”
E é importante lembrar constantemente que, antes de sermos pessoas, somos indivíduos com nossas próprias convicções, ambições, desejos e pensamentos. E não há nada errado em ser como somos.
“Não existe passar ou ser reprovado em ser uma pessoa”
O livro ainda abarca diferentes símbolos mitológicos. As três mulheres Hempstock descritas na história são uma clara referência às Moiras, titânides gregas que controlavam o destino dos seres mortais e imortais. Elas fabricavam o tecido da vida, teciam-no e o cortavam. E isso fica claro quando a Velha Hempstock corta e costura um tecido para mudar uma situação que o protagonista sofreu.