Os adultos carregam desde a infância seus medos, desejos e experiências e tudo isso se sintetiza em uma marca que chamamos de personalidade. O Homem de Giz vem acrescentar mais material para enriquecer esta discussão. Com um pano de fundo criminal, C. J. Tudor conduz o leitor para uma investigação de sua própria identidade.
“Quero que tudo isso não passe de um pesadelo terrível. Mas a realidade é sempre mais difícil e cruel”
Publicado em março de 2018 pela editora Intrínseca, o Homem de Giz é o romance de estreia da britânica C. J. Tudor, que passeou por diferentes profissões até se encontrar na escrita. A história, que possui o gostinho de Stranger Things e It – A Coisa, gira em torno de um assassinato de uma jovem de dezessete anos que mantinha relacionamento com um homem mais velho. A narrativa é conduzida por Eddie, o personagem principal, que vai contando as peripécias de sua gangue, como ela se envolveu com crime e como eles cresceram com isso.
A autora também escreveu O que aconteceu com Annie e participou de um debate na 19ª Bienal do Livro Rio que aconteceu este ano junto de Raphael Montes. Além de confessar que escreve livros de terror porque é uma maneira de conversar com seus medos, ela mais uma vez enfatizou a sua grande inspiração em Stephen King; e não apenas com palavras. Tudor estava usando uma camiseta com as duas meninas de O Iluminado.
“Amigos de verdade são pessoas que você ama e odeia na mesma medida, mas que são parte de você tanto quanto você mesmo”
Por esse motivo, não é mistério algum que o leitor de Tudor vá encontrar forte influência de Stephen King em O Homem de Giz. Isso se torna ao mesmo tempo instigante e um pouco anticlímax. Porque se a pessoa for um fã de King – o que provavelmente deve ser, se gosta de leituras de horror – ela vai adivinhar facilmente alguns pontos da história, como o assassino, por exemplo.
“Todo mundo erra. Todo mundo tem o bem e o mal dentro de si”
Entrementes, O Homem de Giz se prova uma verdadeira busca por nossa identidade. Enquanto humanos, as pessoas manifestam sempre a tentativa de se compreender através do que os outros veem delas misturado a uma concepção do que elas fazem delas mesmas e ainda de acordo com os seus sentimentos, aos quais dão atenção comedida. Mas poucas pessoas realmente se consultam com um psicólogo para encarar essa busca com mais seriedade e profundidade; poucas leem livros com essa finalidade e uma parcela menor ainda sabe que está fazendo isso.
“Afinal, quem somos nós além da soma de nossas experiências, das coisas que aprendemos e colecionamos ao longo da vida? Sem isso, não passamos de um conjunto de pele, ossos e vasos sanguíneos”
Tudor propõe que olhemos para trás, para nossa infância, de modo a compreender o momento que originou tal comportamento, ou o acontecimento que nos fez temer alguma coisa, até mesmo uma pequena rixa que nos fez odiar para sempre uma pessoa. Acontece que tudo na vida nos marca. Talvez desenhar homenzinhos de giz seja uma forma do subconsciente nos mostrar que queremos – ou precisamos – conversar com nosso interior.
“Esse é o problema com adultos: às vezes não importa o que você diga, eles só ouvem o que querem ouvir”
Outro debate bem interessante ao qual a autora convida o leitor é sobre a morte. Além de presenteá-lo com os pensamentos das crianças em relação a este tema, ela, ao mesmo tempo, aponta esta questão: como os pequenos lidam com a morte? O assunto no livro é tratado da maneira mais orgânica que se pode imaginar. Para isso basta analisar como ela é vista no cotidiano. Tudor mostra como ela, a mais temida pelo ser humano, fica escondida no meio de um monótono dia a dia e como as pessoas estão mais preocupadas em se iludir. Também faz questão de lembrar aos esquecidos que eles um dia morrerão, querendo ou não.
“A morte não aceita argumentos. Nenhum apelo final. Nenhum recurso. Morte é morte, e ela detém todas as cartas”
O leitor de Tudor não vai encontrar neste romance um thriller policial vibrante em que as pistas vão apontar resultados eletrizantes. Ela trabalha com a causalidade e transmite isso muito bem ao colocar elementos triviais como fechamento dos casos. Ou seja, ela brinca com as conjecturas do espectador, que, de tão acostumado pela mídia, espera uma reviravolta de outro planeta, mas descobre que o resultado, na verdade, é algo bem comum; algo que poderia acontecer no cotidiano de qualquer pessoa, inclusive no dele.
“As pessoas sempre vão trapacear, Eddie. E sempre vão mentir. Por isso é muito importante questionar tudo. Sempre tente enxergar além do óbvio”
A autora escreve com uma leveza gostosa que é, ao mesmo tempo, estranha ao tema morte. Além disso a fluidez que ela aplica em suas palavras é o que te faz ler cem páginas, acreditando que leu dez. A forma como funciona a mente da escritora no processo criativo é uma beleza à parte, pois evidencia como ela sabe contar uma história. Tudor é muito gentil nas palavras, assim como Neil Gaiman – deve ter alguma coisa na água dos britânicos [risos] – pois mesmo quando narra acontecimentos sangrentos e violentos, o faz com uma leveza inacreditável.
“Fazemos perguntas esperando que nos digam a verdade que queremos ouvir”
Outro ponto muito positivo são os personagens. É impossível não se apaixonar por eles. Cada um mais peculiar que o outro. O leitor sente que não está lendo, mas participando do diálogo deles, conversando com eles. Este fator é muito importante, porque sem personagem não tem história.