Julgar uma adaptação é sempre uma tarefa difícil e que coleciona inúmeras controvérsias. As categorias facilitam para premiar uma obra dentro do seu nicho de atuação e proposta, mas tem uma característica que todas as produções culturais possuem em comum: a história. Toda obra possui uma história.
A história é a única e última coisa que fica na mente de um interlocutor quando tiramos todos os outros elementos (cenas, efeitos especiais, diagramação, narração etc). Por esse motivo, o critério utilizado para compor este ranking é a história e como ele foi adaptada para a mídia proposta, se ela conseguiu manter a premissa original, se conseguiu “acontecer” na adaptação, se foi bem desenvolvida e o que conseguiu agregar de “novo” à história principal já conhecida.
Seguindo estes trâmites, nas linhas abaixo vocês vão poder conhecer quais foram as melhores adaptações – de livro ou HQ para filme/série e vice e versa – lançadas em 2019.
7. IT – Capítulo Dois
É impossível um ranking de melhor adaptação não conter algum exemplo de Stephen King. O filme foi lançado em setembro de 2019 e conta a segunda parte da história baseada no livro It – A Coisa que foi publicado no Brasil pela editora Suma em julho de 2014. It – Capítulo Um foi lançado em setembro de 2017, mas em 1990 houve uma adaptação para o audiovisual com o nome IT e contava a história inteira do livro.
Chamado carinhosamente por seus fãs de Mestre do Horror, King consegue construir uma verdadeira investigação sobre o medo em suas histórias narradas na literatura. Mas será que o cinema conseguiu captar a essência do “eu lírico” do mestre ao traduzir suas palavras em imagens?
Sim e não. Sim, o filme IT – Capítulo Dois consegue imprimir nas imagens a narrativa proposta pelo livro, mas não consegue desenhar perfeitamente que o medo é um produto subjetivo do desconhecido, do que não vemos, e por isso, do escuro. Em sua literatura, sempre que lemos King, é possível observar essa naturalidade com a qual o escritor traz à tona a essência do medo e como ele se desenvolve nos seres humanos.
IT – Capítulo Dois então estaciona em sétimo lugar do nosso ranking por conseguir fazer uma boa adaptação da história, mas contar – a um olhar aprofundado – mais do mesmo quando o assunto é cinema. Realmente tem belas imagens e cenas apavorantes, mas o sentido subjetivo do medo fica perdido em meio a tantos artifícios visuais.
6. Cemitério Maldito
O filme é um remake baseado no livro O Cemitério de Stephen King, que foi publicado pela editora Suma no Brasil em abril de 2013. O remake chegou ao público em maio de 2019, mas a história já havia sido adaptada no passado em 1989.
A nova produção carrega a mesma crítica da obra anterior, com uma ressalva: Cemitério Maldito consegue imprimir nas imagens o medo como um produto do desconhecido. Além disso, o filme propõe uma atmosfera mais sombria ao envolver o mistério que acerca a morte.
A atmosfera sobre o medo da perda versus o medo do desconhecido fica bem acentuada tanto na telona quanto no livro. É por esse motivo que ele mereceu um lugar a frente do famoso IT. Afinal a narrativa funcionou de maneira satisfatórias – isto é, evocando mais medo – nas duas mídias.
5. The Umbrella Academy
Uma das melhores obras que a Netflix trouxe em fevereiro de 2019 foi a adaptação de The Umbrella Academy. Muita gente não sabia naquele momento que estavam assistindo a uma história escrita pelo ex-vocalista da My Chemical Romance Gerard Way e ilustrada pelo brasileiro Gabriel Bá.
Lá fora, “A Academia Umbrella” (tradução livre) começou a ser publicada pela Dark Horse em setembro de 2007 e passou a ser republicada no Brasil pela Devir em novembro de 2018 devido ao anúncio da Netflix sobre a adaptação.
The Umbrella Academy não só merece estar neste ranking como também necessita de apenas uma argumentação para justificá-la: a série conseguiu explorar o conteúdo da HQ com maestria. Os roteiristas fizeram um excelente trabalho para expandir alguns elementos pequenos apresentados nas páginas da HQ.
Pode-se utilizar como exemplo o engrandecimento da personagem Agnes, o par romântico de Diego, Eudora, e, claro, a humanização de Hazel e a inflexibilidade em forma de poder de Cha-Cha que foi adaptado como mulher (e interpretada pela maravilhosa cantora Mary J. Blige), o que só tem a enriquecer a crítica.
Entretanto, o mais interessante é como a história conseguiu condensar dois arcos entrelaçados em uma trama só. Este trabalho foi de primeira qualidade e os recortes das cenas, entre uma piscada e outra, lembrava o espectador dos cortes dos quadrinhos.
4. O Labirinto do Fauno
Este é um caso inverso. O Labirinto do Fauno nasceu primeiro no formato audiovisual criado e dirigido por Guillermo Del Toro em dezembro de 2006. Somente em julho de 2019, a obra ganhou uma adaptação em papel pela Intrínseca para eternizar em palavras a beleza poética do mundo fantástico de Ofélia.
A editora Intrínseca conseguiu cuidar muito bem de uma obra ganhadora de Oscar e do prêmio Hugo (2007). O trabalho gráfico é impecável, mas o que é importante ressaltar aqui é como a literatura consegue ter o mesmo sabor do drama vivido pelas personagens do filme. Além disso, o livro ainda consegue expandir o universo mitológico do Fauno, enriquecendo o conhecimento do leitor.
É uma obra literária de primeiríssima qualidade textual e que deve ser consumida separadamente do filme, apesar de constar nesta lista por motivos comparativos. Palavras com sabor é algo muito difícil de conquistar, ainda mais quando já existe um filme perfeito lançado.
3. Good Omens
Compondo nosso top 3 de melhores adaptações, Good Omens não podia faltar. A história provém de Belas Maldições, um livro organizado e escrito por Neil Gaiman em parceria com Terry Pratchett; lançado em maio de 1990 e relançado com nova capa – da série – em 2019 pelo selo Bertrand do Grupo Editorial Record. A série foi lançada na Amazon Prime Vídeo em maio de 2019.
Este é um exemplo raro, raríssimo, de como a adaptação conseguiu ser melhor que o livro. Naturalmente é muito mais frequente ouvir que o livro é sempre superior ao filme ou série, mas neste caso não é isso que acontece. O livro é uma concha de retalhos com várias cenas moldadas a cortes precisos pelo hábil Gaiman, porém que, no formato literário, tende a ser um tanto simplificado demais. Entretanto quando estas mesmas cenas ganham cor e movimento diante de nossos olhos, elas parecem realmente demonstrar o motivo de ter sido escrita.
Desta obra é possível destacar três grandes pontos positivos que fazem dela uma série digna do terceiro lugar: o modo como Gaiman conseguiu contar através de imagens uma história ainda mais interessante que no livro, a atuação impecável de todos os atores, em especial Michael Sheen (Aziraphale) e David Tennant (Crowley), bem como o perfeito jogo visual das fotografias em paralelo com os contornos modernos que cada elemento místico recebeu. Perfeito. Zero defeitos.
2. Coringa
Antes de entrar no cerne deste merecido segundo lugar, vamos deixar claro que esta adaptação não se concentra em uma reprodução de uma “história” impressa, mas sim na premissa histórica geral do personagem Coringa, que sim, nasceu em uma novela gráfica. Dito isso, é possível prosseguir e encarar o filme como uma adaptação. O filme estreou em outubro de 2019.
Não é preciso justificar por que o filme indicado a 11 Oscars em 2020 é nosso vice-campeão. Mas é preciso explicar porque ele não ganhou o primeiro lugar. Coringa é, antes de mais nada, uma nova leitura sobre um possível passado de um personagem super conhecido. Por este motivo, leva-se em consideração a facilidade que o filme tinha para ser aceito neste novo formato, ainda mais quando se observa que outros “Coringas” já estrelaram na telona, o que forma um tapete vermelho para o novo.
Outro motivo é que, na questão da originalidade, o filme consegue ousar na construção de um novo passado para o personagem, mas busca poucos elementos “nunca vistos” em outros exemplos cinematográficos. Claro que podemos destacar o novo Coringa como uma pessoa normal tentando levar a vida, algo que nenhum Coringa ainda tinha sido no cinema, mas isso não é algo novo quando se amplia o escopo. Quantas personagens (de modo geral) já não trouxeram essa mesma temática bullying / menosprezo social / construção de criminosos?
Não obstante, Coringa é um filme único por conseguir contar uma história em cada elemento midiático apresentado na telona. Tudo no filme tem um significado e desenvolve uma narrativa particular, como é o caso da maquiagem, do terno, da trilha sonora, da doença, da escolha de caráter introspectivo, do tema, das cores sombrias nas fotografias, do cenário, das falas, enfim de tudo. Merece o Oscar de Melhor Filme.
1. Watchmen (série)
Não é possível entender – na verdade é – como uma série dessa magnitude foi pouco comentada na mídia. Watchmen foi lançado em outubro de 2019 na HBO. Ele era um desafio desde o início, pois já tinha conseguido estrear nas telonas com uma boa adaptação (fevereiro, 2009). A história principal da HQ ganhou o cinema com uma trama e roteiro bem escritos, então o que mais se podia dizer desta história?
Uma pergunta respondida pelos 9 episódios da série. Watchmen não é apenas a melhor adaptação de 2019 como é a melhor história contada neste mesmíssimo ano. Você pode se perguntar – caso não tenha assistido ainda – como isso é possível? A resposta para isso é simples: escrevendo uma nova história.
Watchmen consegue se apropriar perfeitamente dos eventos principais da trama original da HQ e desenrolar as consequências, por diferentes prismas, na contemporaneidade. As controvérsias que tanto temperavam os personagens principais da Grafic Novel são exploradas e expandidas na série, sendo ainda utilizadas para o desenvolvimento da narrativa da nova obra.
O maior destaque passível de listagem é a crítica ao racismo estrutural dos Estados Unidos, que foi mais visível por segregar microscopicamente negros e brancos. No Brasil o racismo também foi violento, mas era “nublado” por visões ideológicas estoicas. Watchmen, no entanto, consegue usar a backstory de Rorschach para construir a trama principal ao mesmo tempo que desenvolve a estrutura social como uma inimiga a ser combatida na série.
Esta foi a brilhante e assertiva escolha feita pelos roteiristas, a alternativa de um vilão invisível, mas que está na vista de todos: a sociedade. É muito interessante ver como esta linda palavra (linda na teoria) é a justificativa para perpetuação do preconceito racial internalizado em cada lei, código e moral regados e repaginados por nós, “pessoas de bem”. Isso é o tempo todo jogado na nossa cara durante a série.
Essa discussão profunda ainda consegue apresentar elementos ficcionais muito atraentes juntamente com reflexões sociais possíveis sobre a maleabilidade do poder sócio-político, bem como tecnológico. E ainda consegue manter viva (não só isso, consegue incorporar um novo significado) a grande premissa título da história: quem vigia os vigilantes?